sábado, 7 de junho de 2008

Nem ciência, nem religião

No julgamento sobre o uso de células-tronco de embriões humanos nos laboratórios, o Supremo se ateve ao direito – e fez história

Carlos Graieb

Na quinta-feira passada, o Supremo Tribunal Federal concluiu um julgamento histórico e liberou o uso de células-tronco de embriões humanos em pesquisas científicas. O processo havia chegado ao Supremo em 2005, suscitando uma questão mais que espinhosa: quando começa a vida? Numa iniciativa inédita, o tribunal convocou uma audiência pública em que consultou 22 estudiosos com treino em genética e neurociência. Mas havia outra visão em jogo – a da religião. Nos três anos pelos quais se estendeu a discussão em torno do caso, foi exatamente isto o que mais sobressaiu: a disputa entre ciência e fé. Seria um erro, contudo, supor que a discussão no Supremo seguiu esse mesmo script. Foi isso que a tornou memorável. Os ministros não tentaram resolver o enigma milenar da gênese da vida, quer com uma tese metafísica, quer adotando um ponto de vista científico, num assunto sobre o qual a própria ciência não tem uma palavra final. Transformaram o enigma numa questão técnica (o direito brasileiro protege a vida humana com a mesma intensidade em suas várias etapas de desenvolvimento, ou há gradações?), fizeram apenas o que deviam fazer – interpretar as leis e a Constituição – e deram uma decisão à sociedade. "Agora, pode-se é voltar ao laboratório", diz a geneticista Mayana Zatz, coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano, da Universidade de São Paulo. "Estamos muito atrasados em relação ao Primeiro Mundo. Precisamos trabalhar para recuperar esse atraso."

Em maio de 2005, o então procurador-geral da República, Claudio Fonteles, propôs uma ação de inconstitucionalidade alegando que o artigo 5º da Lei de Biossegurança, editada dois meses antes, não poderia valer. O artigo autorizava a pesquisa com células-tronco de embriões humanos, dadas certas condições.


Fonteles afirmou que "a vida humana acontece na, e a partir da, fecundação". Assim, qualquer ato que impedisse o desenvolvimento do embrião deveria ser interpretado como um atentado à vida e à dignidade da pessoa humana, dois direitos fundamentais. Quase sempre que células-tronco são retiradas de um embrião humano ele é destruído. Logo, a norma tinha de ser derrubada. No plenário do STF, Carlos Alberto Direito seguiu essa mesma lógica. Na verdade, com um pequeno passo lateral. Observando que o pesquisador americano Robert Lanza anunciara ter obtido células-tronco de embriões sem destruí-los, Direito disse que pesquisas realizadas com essa técnica seriam, sim, constitucionais. Ou seja, tentou restringir as pesquisas, mas não bani-las totalmente. (Na prática, contudo, a experimentação ficaria emperrada, porque, além de ser controvertida, a técnica de Lanza nunca foi replicada por outros.)

Direito e Fonteles são notoriamente católicos. No curso do processo, foram acusados de obscurantismo, de tentar sobrepor preconceitos religiosos à razão. São acusações injustas. Primeiro, porque o argumento da Igreja – o de que a vida é um bem sagrado, um valor absoluto e inviolável do primeiro instante até o suspiro final – não tem nada de absurdo do ponto de vista da ética. Ao longo dos séculos, inúmeras conquistas da civilização se deram graças a esse raciocínio. Em segundo lugar, porque ambos sabem que ética e direito são reinos vizinhos, mas não coincidentes. Eles não trouxeram a fé para o debate e raciocinaram de acordo com princípios do direito brasileiro. Não conseguiram, contudo, que o tribunal se alinhasse com eles.

Um dos argumentos contra a tese de Claudio Fonteles, repetido algumas vezes no julgamento, foi o de que durante a Constituinte, na década de 80, deputados tentaram incluir no texto final da Constituição uma cláusula de "proteção à vida desde a concepção", mas o projeto não vingou. Preferiu-se manter silêncio quanto ao início da vida. Com isso, a questão jurídica não seria determinar um ponto de partida para a existência, mas saber "que aspectos ou momentos da vida estão validamente protegidos pelo direito, e em que medida". Essa frase do ministro Carlos Britto, que foi relator do processo, indica a linha de raciocínio seguida pelos seis juízes que votaram pela liberação das pesquisas. Grosso modo, eles afirmaram que as leis nacionais tratam de maneira diferenciada o ser humano em suas várias etapas de desenvolvimento – embrião, feto, pessoa – e que pode haver uma gradação na maneira como se aplicam, em cada caso, os princípios da dignidade e do respeito à vida. Em razão dessa lógica implícita, o aborto quando há risco de morte para a mãe, por exemplo, já seria admitido no ordenamento jurídico brasileiro. Pelo mesmo motivo, a destruição de embriões seria justificável quando feita nos termos da Lei de Biossegurança, e tendo em vista o bem-estar e a dignidade da espécie humana como um todo. As duas ministras da Corte, Ellen Gracie e Carmen Lúcia, esgrimiram argumentos pragmáticos. Carmen Lúcia afirmou que, se não fossem empregados em pesquisas que talvez possam, no futuro, beneficiar doentes, os embriões inviáveis ou congelados de que fala a lei teriam como destino o lixo: "Lixo humano. Em vez disso, podem ser matéria utilizada em proveito da vida".

O julgamento também teve muito a ver com a defesa da liberdade de pensamento e de trabalho científico. Quase todos os ministros ressaltaram que é preciso vigiar para que as pesquisas não enveredem por caminhos bisonhos ou perigosos – como a eugenia, a mistura de células de homens e animais e a clonagem reprodutiva. Também foi comum uma certa crítica à arrogância científica. "Será razoável acreditar que a ciência tudo pode?", perguntou o ministro Direito. Eros Grau foi mais incisivo: "Este debate não opõe ciência e religião, porém religião e religião. Alguns dos que falam pela ciência são portadores de mais certezas do que os líderes religiosos mais conspícuos. Portam-se com arrogância que nega a própria ciência". O pior, segundo Grau, é que muitas dessas certezas seriam um véu para acobertar os interesses do mercado. Por trás desse tipo de discurso há um certo pensamento teórico que ficou mais claro no voto do ministro Lewandow-ski, que citou os filósofos Marx, Gramsci e Lukács para dizer que a ciência é "uma ideologia que encobre valores e interesses" e que muitas vezes "faz das pessoas mercadorias". Uma veia de pensamento obstruída pelo pior tipo de colesterol esquerdista. Embora mais brandos, Gilmar Mendes e Cezar Peluso também acharam que a Lei de Biossegurança deveria instituir um controle mais firme sobre o trabalho dos cientistas, fazendo menção a uma Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Todos os cinco propuseram acréscimos à lei – ou, dito de outra maneira, pretenderam legislar por meio de suas sentenças, adicionando cláusulas ao texto em vez de apenas interpretá-lo. Gilmar Mendes fez uma longa e enfática defesa dessa possibilidade. "Já nos livramos do dogma da atuação restritiva. Uma atuação criativa vai nos permitir suprir muitas lacunas da lei", disse ele. No julgamento das células-tronco, o STF não fez nem falsa ciência nem falsa metafísica. Mas as atribuições do Legislativo, ele pensou em usurpar. No fim, fez-se verdadeira justiça.




COMO VOTARAM OS MINISTROS DO SUPREMO

A minoria, no placar de 6 a 5, tentou criar novas condições para as pesquisas sobre células-tronco com suas sentenças

Pela liberação das pesquisas



















Com restrições às pesquisas




















Fonte: http://vejaonline.abril.ig.com.br/040608/p_064.shtml

Um comentário:

Anônimo disse...

Este comentário vem de encontro ao meu pensamento. Achei-o propício neste exato momento. Parabéns.