domingo, 21 de setembro de 2008

Questões atuais da legítima defesa

Alice Bianchini
Advogada. Mestre em Direito pela UFSC. Doutora em Direito pela PUC/SP. Especialista em Teoria e Análise Econômica pela UNISUL e em Direito Penal Econômico Europeu pela Universidade de Coimbra/IBCCRIM. Professora do Mestrado em Direito da Unisul. Coordenadora Geral dos Cursos de Especialização Televirtuais da Unisul/Rede LFG. Autora de diversas obras publicadas pela Editora RT.
Nos primeiros aglomeramentos humanos a vingança privada foi a forma de resposta às ações agressivas. Sucedeu-a à fase da vingança divina, substituída, posteriormente, pela vingança pública, chegando, dias de hoje, ao período criminológico. Como em todas as etapas anteriores, hoje prevalece o entendimento de que, havendo encontro de agressões, aquele que agir no sentido de repelir ou evitar ataque injusto (para salvaguardar outro direito de igual ou equivalente valor) não deve sofrer recriminação.
As justificativas teóricas podem ser fundamentadas em quatro grupos: (a) na equidade; (b) na moralidade da ação; (c) na necessidade política; (d) na própria natureza do direito (PEDRO VERGARA). Há, ainda, aqueles que negam qualquer justificativa, apoiando-se em razões humanas.
Para as teorias da eqüidade, a legítima defesa se explica pelo instinto de conservação e pela coação moral (constrangimento e ameaça) que a agressão injusta representa. As teorias da moralidade da ação buscam fundamentação no motivo determinante do ato defensivo, qual seja, salvaguardar o direito colocado indevidamente em perigo. As teorias de base política suportam-se no fato de que sempre que o Estado deixe de atuar em defesa do cidadão, este pode substituir àquele. Por fim, para as teorias com assento no conceito do direito, o agente recebe tacitamente uma delegação do Estado para defender-se; trata-se, assim, de exercício de um direito subjetivo.
A legítima defesa, no Código Penal, está prevista no art. 25. É causa excludente da ilicitude ou da antijuridicidade, e confere ao indivíduo que está sendo agredido (agressão atual) injustamente (agressão injusta), ou que se encontra sob séria ameaça de agressão (agressão iminente), ou que se vê diante de uma agressão dirigida a outrem (legítima defesa de terceiro) o poder de sacrificar bens alheios, desde que os meios utilizados sejam necessários (necessidade dos meios), para o fim de salvaguardar outro bem igualmente valorado (importância do bem jurídico salvaguardado), e tenham sido utilizados meios moderados (moderação dos meios). Vê-se, assim, que o escopo da legítima defesa é consentâneo com o do Direito penal: proteção de bens jurídicos.
Atualmente, quando ganha proporções acentuadas a preocupação com a segurança, o tema da legítima defesa passa a ter elevada importância. Conforme dados do Datafolha, a segurança é tida como o principal problema do país (FSP, 25 mar. 07, A4), significando que a segurança deixa de ser vista como função de governo, de combate à criminalidade, para converter-se em direito (largamente reivindicado) da sociedade. Se antes a tônica era a segurança pública, agora é a segurança privada que se destaca.
A preocupação com a segurança, aliada à não confiança nas instituições de controle social formal (sistema de Justiça penal), resulta em aumento de meios de proteção e se faz sentir diretamente nas renovadas invenções, na intensa comercialização e no alargamento das aplicações de aparatos de segurança (carros blindados, cercas elétricas, guardas particulares, alarmes, câmeras de observação, cães bravios, etc.). Disso decorre o fenômeno conhecido como "indústria da segurança", o qual conta, por sua vez, com a disseminação da insegurança como clima fundamental para a garantia de lucros.
Outra importante conseqüência é a cada vez maior falta de proporcionalidade entre o bem jurídico a ser protegido e o efeito advindo do funcionamento dos instrumentos utilizados para prevenir ou obstar ataque a bens particulares. Trata-se dos denominados ofendículos, que são dispositivos de defesa dispostos de maneira a dificultar ou impedir ataque ilícito a um bem. Aos meios de defesa mais bem desenvolvidos e seguros, aliás, somente uma parcela pequena da população tem acesso: os detentores de recursos financeiros. Grande parte da população lança mão de meios mal arranjados, potencialmente danosos e letais, porque atendem pouco às exigências técnicas de segurança e muito mais à imaginação agressiva de quem os improvisa.
Apesar de os ofendículos, para a maioria da doutrina, caracterizarem-se como legítima defesa, há quem entenda que o seu uso constitui exercício regular de direito, tendo em vista, principalmente, que, quando os equipamentos, sistemas ou instrumentos de proteção são instalados, ausente se encontra o requisito temporal da legítima defesa, qual seja, a atualidade ou a iminência da agressão. Fundamentando-se no mesmo argumento, outra parte da doutrina defende que, enquanto não entrarem em ação os meios utilizados para a defesa, deve-se falar em exercício regular de direito; tão logo acionado, inscrever-se-ão nos limites da legítima defesa.
São defensores da primeira tese, dentre outros: BASILEU GARCIA, CEZAR ROBERTO BITENCOURT, FLÁVIO AUGUSTO MONTEIRO DE BARROS, FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, JOSÉ FREDERICO MARQUES, GALDINO SIQUEIRA, JOÃO JOSÉ LEAL, LUIZ ALBERTO FERRACINI, LUIZ FLÁVIO BORGES D'URSO, MAGALHÃES NORONHA e NELSON HUNGRIA.
Entre os que compartem o entendimento de que se trata de exercício regular de direito: ANÍBAL BRUNO, BENTO DE FARIA, FERNANDO CAPEZ, GUILHERME DE SOUZA NUCCI, JOSÉ GERALDO DA SILVA, MARCELLO JARDIM LINHARES, JULIO FABBRINI MIRABETE, PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR e ROMEU DE ALMEIDA SALLES JÚNIOR.
Como partidários da terceira tese, podemos encontrar: DAMÁSIO DE JESUS, FRANCISCO DIRCEU BARROS, LUIZ FLÁVIO GOMES e LUIZ REGIS PRADO.
Parece-nos assistir razão a estes últimos penalistas. A agressão injusta, embora não se tenha dado no momento em que os instrumentos de defesa foram instalados, realiza-se quando acionados, em face do ataque do agressor. Ou seja, ainda que a instalação do aparelho preceda o momento da agressão, ele entrará em funcionamento, ou cumprirá sua função, tão logo, mas tão só quando esta se torne atual ou iminente. Trata-se, portanto, de mera criação de risco permitido. Na hipótese de haver abuso, responderá o agente pelo excesso doloso ou culposo, conforme o caso.
A utilização mais comum dos ofendículos ocorre na proteção ao patrimônio, locus de grande parte dos excessos. O direito do cidadão de defender seus pertences, como todos os demais, deve ser exercido com consciência e prudência, a fim de que não exponha a risco bens jurídicos alheios de maior valor. Sempre que o agente se puder valer de meios de proteção não ofensivos (alarmes sonoros, por exemplo), estes devem ser preferidos em relação a meios de proteção ofensivos (cercas elétricas, v.g.).
Todas as cautelas devem ser tomadas pelo agente, afastando-se, ao máximo, o perigo comum, para que, em caso de acionamento dos ofendículos, não venha a responder por excesso. A exorbitância dos limites da defesa pode ser aferida em relação: (a) aos meios usados para a estruturação do dispositivo (se eram ou não necessários) e (b) à potencialidade de sua atuação (se eram ou não moderados).
Dentro desse tema, bastante eloqüente é o exemplo trazido por MAGALHÕES NORONHA, e repetido por tantos juristas, acerca do excesso de legítima defesa daquele que eletrifica porta de casa com acesso direto ao público, bem como daquele que eletrifica uma porta a que se tenha ingresso apenas pela parte interior da residência, aplicando uma descarga capaz de causar a morte ou sério dano físico.
Ainda em relação à moderação, vê-se que o "estado de insegurança sentida" tem levado a que se amplie cada vez mais o âmbito de limitação ético-social da legítima defesa: cães treinados para atacar ferozmente o invasor, cercas elétricas com alta voltagem e/ou dispostas em local de fácil contato e/ou não acompanhadas de avisos indicativos de perigo, utilização de arma de fogo, objetos perfurantes ou cortantes dissimulados, dispositivos eletrônicos que disparam gases tóxicos, etc. são largamente utilizados e aceitos pela sociedade, sem causar qualquer perplexidade.
Percebe-se, em muitos desses casos, que, de mecanismo de autoproteção, o ofendículo transforma-se em contra-ataque. Se os meios utilizados são superiores aos necessários, os danos que vierem a produzir aos direitos do agressor não se encontram legitimados, caracterizando-se, por isso, o excesso. Há que se prestar tributo à exigência de proporcionalidade entre a reação defensiva e a agressão injusta. Não é o que ocorre, por exemplo, na situação em que, para defender o patrimônio, o agente utiliza armadilhas de alto poder letal. Não existe proporcionalidade no sacrifício de uma vida humana para a salvaguarda exclusiva do patrimônio.
Sentimentos coletivos de insegurança, descrédito na Justiça e fratura da ordem social levam ao medo e à intranqüilidade, fazendo com que cada vez mais pessoas lancem mão de recursos de autodefesa. Tal não seria problemático se não se estivesse utilizando meios sempre mais agressivos, caracterizando, inúmeras vezes, excesso de legítima defesa, numa demonstração de retorno à fase, que parecia superada, da vingança privada, embaralhando os sentimentos de proteção e de vingança. Embalado pela "cultura do medo" (BARRY GLASSNER), tudo isso dá ensejo a uma sociedade que, além de buscar fortes aparatos de proteção individual, deposita nas mãos da lei penal (e principalmente em um seu maior rigor) a solução para os seus problemas relativos à violência, não sendo capaz de perceber que os aplicadores da Justiça penal são exatamente aqueles nos quais ela já perdeu toda a confiança (policiais, juízes, tribunais, etc.).
Os excessos têm alcançado, talvez, culpados, mas igualmente, e quiçá em maior proporção, vitimado inocentes (como crianças que pulam o muro atrás de uma bola e são eletrocutadas ou cidadãos pacíficos atacados por cão mal controlado), com conseqüências de responsabilidade civil e criminal em número que se acentua.
Referências bibliográficas
AMADA, Célio de Melo. Legítima defesa. São Paulo: José Bushatsky, 1981.
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral. T. I. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, "sociedade de risco" e o futuro do direito penal: panorâmica de alguns problemas comuns. Coimbra: Almedina, 2001.
GALVÃO, Fernando. Direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Impetus, 2004.
GOMES, Luiz Flávio, GARCIA-PABLOS DE MOLINA, Antonio. Direito penal: parte geral. São Paulo: RT, 2007, v. 2.
GLASSNER, Barry. Cultura do medo. Trad. Laura Knapp. São Paulo: Francis, 2003.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
PASTANA, Débora Regina. Cultura do medo: reflexões sobre violência criminal, controle social e cidadania no Brasil. São Paulo: IBBCrim, 2003.
QUEIROZ, Paulo de Souza. Direito penal: introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2001.
VERGARA, Pedro. Da legítima defesa subjetiva. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1992.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. v. 1.
Artigo publicado em junho de 2008 na Carta Forense, disponível em:

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