domingo, 12 de outubro de 2008

Onde estão os Direitos Humanos? Certamente não estão na Amazônia!


Karina Merlo
Em recente palestra, com o tema "Teoria do Delito e as suas Controvérsias", o penalista e estimado amigo Rogério Greco nos trouxe um vídeo para reflexão: "Hakani". O vídeo mostra, com toda a sua propriedade e realismo, as atrocidades cometidas em uma das tribos na Amazônia: crianças são enterradas vivas por terem nascido gêmeas ou com alguma deformidade física, o que, na cultura desses povos, representa algum tipo de maldição.
Isso é uma afronta aos direitos fundamentais que tanto defende a nossa Constituição Federal de 1988 e suas inúmeras emendas. Afinal, índio não é brasileiro? Eu diria, até pelo contrário: se considerarmos as raízes do povo brasileiro, não há uma cultura que nos represente mais, historicamente, do que os povos indígenas. Põe em terra as penas de banimento, as cruéis e a pena de morte que, salvo em caso de guerra declarada, são descartadas pela Carta Magna em seu art. 5º, XLVII, a, d, e, além dos temidos "tribunais de exceção" do art. 5º, XXXVII. Isso quer dizer que onde há tribo indígena no Brasil existe "terra sem lei"? Que dirá princípios!
E o Direito Penal? Além do estigma de só ser efetivo para punir os P2 (leia-se Protelados do social e Pobres, e não Parlamentares e Pobres!) não se aplica aos crimes cometidos por esses povos?
Quando o assunto em pauta é algum direito reservado aos índios (saúde, educação, propriedade, entre outros) surgem várias entidades em defesa desses povos silvícolas. É o chamado defesa do direito das minorias. Mas quando vem à tona as aberrações de algumas culturas como a que se vê no vídeo, nada se escuta. Mais fácil é citarmos exemplos das mutilações em povos africanos do que olharmos para os abomináveis exemplos que ocorrem no solo amazônico. É a velha história: a injustiça está muito longe dos nossos lares...
Acesse a página de Hakani para maiores detalhes:

7 comentários:

Anônimo disse...

Oi, Karina,
Que bom ver seu blog, parabéns pela luta em prol dos direitos humanos. Tenho estudado e trabalhado com os temas de direitos humanos e de direitos indígenas nos últimos 13 anos, inclusive por força da minha atuação nessas áreas no MPF. Também estou terminando meu doutorado na USP, sobre direito ao desenvolvimento das comunidades indígenas.
A relação “direitos humanos” versus “multiculturalismo” é um grande desafio para todos, pois não é uma tarefa fácil compreender culturas estranhas. Todo observador olha para práticas diferentes com os olhos da sua própria cultura. Assim, a empatia (capacidade de se colocar no lugar do outro) fica prejudicada, e a tendência será sempre firmar uma visão etnocentrista, que coloca a cultura própria como a melhor ou a superior. Isso ocorre com todas as culturas, não apenas na cultura ocidental. É preciso lembrar que há críticas sérias aos direitos humanos, que historicamente sempre foram manipulados para atenderem a interesses econômicos e geopolíticos (Boaventura de Souza Santos). Dentre elas a de que os países que os defendem são também seus grandes violadores. Além disso, estes países utilizam ou não a mídia e o discurso de direitos humanos conforme seus interesses, dando origem aos estudados fenômenos de supervisibilidade ou invisibilidade de violações (Richard Falk). Ou seja, quando há interesse em divulgar as violações de certas culturas, promove-se a supervisibilidade dos fatos; quando as violações ocorrem em nome de certos interesses elas são escondidas, tornam-se irrelevantes ou invisíveis.
Apesar disso, eu acredito que há limites para o multiculturalismo. Por isso, pessoalmente condeno as práticas dos Hakani. Para mim são desumanas (embora eu saiba que na cultura deles desumano seria deixá-las viver). Porém, é preciso pontuar algumas coisas, para que o debate não perca os rumos adequados:
1) Como consta no link que você divulgou, as cenas do vídeo não são verdadeiras. Foram produzidas e feitas com atores índios pagos por isso, e a cova era feita de chocolate. O filme “documentário” foi financiado por um grupo evangélico (os evangélicos americanos também defendem o ensino do criaciosmo nas escolas, negando a teoria da evolução). Isso se insere, portanto, na intenção de dar supervisibilidade às violações que interessam a alguém. Os evangélicos têm interesse na destruição da cultura “pagã” indígena. Desde o início da colonização da América a necessidade de cristianização foi o argumento utilizado para escravizar os índios e tomar suas terras. Várias bulas papais justificaram esses atos e deram esses poderes, por exemplo, aos reis espanhóis Fernando de Aragão e Isabel de Castela. A verdadeira intenção era a apropriação das riquezas. Com base nisso houve um verdadeiro genocídio. Quem tiver estômago para ler as atrocidades pode comprar as obras do Frei Bartolomé de Las Casas, um dos grandes defensores dos indígenas. O direito internacional nasceu exatamente do inconformismo com essa situação, nas lições de Francisco de Vitória. A primeira questão de direitos humanos da América foi justamente saber se os índios tinham alma e se eram ou não seres humanos. A questão foi discutida em um tribunal especial em Valadollid, por volta de 1550. A escravidão foi defendida por Juan Gines de Sepúlveda, com base na teoria Aristotélica de que há povos destinados à escravidão. Os índios venceram, foram reconhecidos como gente, mas de nada adiantou na prática.
2) Essa supervisibilidade termina por generalizar a questão, como se pertencesse à cultura indígena em geral, pelo menos na Amazônia. Isso não é verdade. Poucas tribos no Brasil adotam a prática denunciada.
3) Ao mesmo tempo, essa supervisibilidade contribui para a invisibilidade de outras questões. As maiores causas de motalidade infanto-juvenil em tribos indígenas no Brasil de hoje provavelmente são a desnutrição crônica e o suicídio. Isso ocorre especialmente no Mato Grosso, onde tais índices são alarmantes. A causa é o violento processo de tomada de terras indígenas. Privados de suas terras, destinadas ao agro-negócio, os índios viram favelados e desnutridos, e, diante da perda da razão de viver (a terra para eles é habitat, é a razão da sua existência, não é produto econômico), suicidam-se, especialmente os mais jovens. O tema é abordado largamente, por exemplo, no livro “Direito ao pão novo: o princípio da dignidade humana e a efetivação do direito indígena”, de Tataiana Azambuja Ujacow Martins, São Paulo, Editora Pilares, 2005. Ali estão, inclusive, fotos verdadeiras chocantes.
4) O combate à prática denunciada, entretanto, deve ser feito. Há várias ações da FUNAI e do MPF nesse sentido. Essa prática, porém, não pode de forma alguma ser combatida através do direito penal. Seria um absurdo. Os poucos grupos indígenas que ainda as admitem não tem a menor possibilidade de serem considerados imputáveis penalmente. Logo, colocar-lhes na cadeia seria uma violência etnocentrista, que poderia trazer outras conseqüências graves para todo o grupo. Atualmente especialistas do mundo todo têm concluído que as formas mais adequadas para o combate a práticas culturais violadoras de direitos humanos dizem respeito a contatos dialógicos de convencimento, como a hermenêutica diatópica de Boaventura de Souza Santos. É assim que se está combatendo a mutilação feminina em Burkina Faso, por exemplo (http://diplo.uol.com.br/2006-08,a1380). Embora aparentemente possa seduzir, o direito penal não é a resposta mais adequada para práticas culturais em geral.
5) Nossa cultura, infelizmente, ainda não tem nenhuma condição moral de se julgar superior em relação ao tratamento das crianças. A nossa sociedade é capaz de as deixar com fome, de matá-las por desnutrição, de explorar o seu trabalho, de prostituí-las, de as colocar nas FEBENS da vida, de negar-lhes educação, etc. As crianças indígenas, ao contrário, são muito bem tratadas por todas as tribos. Não há a menor hipótese de passarem fome (mesmo que seus pais morram), exercerem trabalho infantil ou serem prostituídas (salvo onde as suas terras foram tomadas e não há como plantar e os índios expulsos para as periferias das grandes cidades). Na cultura indígena há respeito absoluto pelas crianças. As práticas denunciadas são, como já disse, condenáveis, e devem ser combatidas. Porém, na cultura das poucas tribos que as realizam, trata-se de uma libertação delas. Isso é obviamente errado, mas é preciso observar o contexto e trabalhar adequadamente para mudá-lo.
6) Em termos de direitos humanos, os índios não são algozes, são vítimas. Sugiro, para quem tiver coragem de ler, alguns livros, como “Enterrem meu coração na curva do rio” (Dee Brown), para os índios norte-americanos e a colonização inglesa; “O Paraíso destruído” (Bartolomé de Las Casas), para os índios da América Latina e a colonização espanhola; “Os índios e a civilização” (Darcy Ribeiro), para os índios brasileiros, a colonização portuguesa e o tratamento que o Brasil deu a eles.
Desculpe o texto longo.
Um grande beijo,
Robério

Karina Merlo disse...

Olá, Robério!
Obrigado por seus esclarecimentos e o seu posicionamento.
Concordo no aspecto sensacionalista em que são propaladas algumas situações pontuais como esta da Hakani, e sei que há interesses em tudo que nos chega de informação. Infelizmente nesse caso, não sei qual seria exatamente o propósito. A dualidade das ações do homem fazem parte do universo. A opinião de um antropólogo será oposta à minha.
No ápice dos Direitos Humanos está a vida (ao meu ver). Não há cultura que justifique a morte do próximo, e pior, de uma criança (mais indefesa ainda do que um inimputável indígena!) num mundo que busca uma homogeinização no que tange ao direito à vida, integridade física, dignidade e até igualdade. A minha opinião é que culturas que nos precederam fazem parte da história e não há mal nenhum que, com o passar do tempo, virem mesmo história.
Talvez eu pense assim por não ter amadurecido quanto ao tema, ainda carente de informação. Se tiver algo que possa me enviar por e-mail, agradeço de coração.
Às vezes o sofrimento está na ignorância.
Abração.

Anônimo disse...

Karina,
Na verdade nossas posições têm muito mais pontos de convergência do que de divergência. Concordamos quanto ao essencial, que é a possibilidade de limitar as culturas em nome dos direitos humanos, e que não deve haver práticas culturais que justifiquem a morte. Assim, nós dois somos contra a prática de enterrar crianças vivas, assim como eu sou também contra a possibilidade cultural da pena de morte, como ocorre em diversos países "civilizados" (imagino que você compartilhe dessa posição), já que o bem maior a ser defendido é a vida digna.

Fora isso, eu apenas coloquei alguns aspectos que na minha opinião devem ser considerados, como é o caso de assumirmos que os direitos humanos podem ser (e muitas vezes são)manipulados. Isso não signifca que devemos abandoná-los, mas apenas que devemos ter consciência da sua incompletude, por um lado, e lutar pela sua maior efetivação, de outro. Coloquei também que há certos interesses contrários à causa indígena, e que devemos estar atentos a eles. No caso dos Hakani, esses interesses dizem repeito à supervisibilidade que se pretende dar à prática cultural. É fato que ela é absurda e que deve ser modificada, mas a supervisiblidade pretende descaracterizar a cultura indígena em geral, especialmente na amazônia, colocando a opinião púlbica contra a causa indígena como um todo, como se eles fossem contumazes violadores de direitos humanos, quando na verdade são vítimas. Uma vez descaracterizada a proteção aos direitos indígenas, aberto estará o caminho para vários grupos que têm os mais diversos interesses: evangelização, terras, mineração, etc. A organização que está por trás do filme, a JOCUM, é uma velha conhecida do MPF, e sistematicamente viola todos os direitos indígenas em nome da sua evangelização, levando-os, inclusive, muitas vezes ao suicídio. A JOCUM foi investigada, por exemplo, no Amazonas, pelos colegas da Procuradoria da República, no bojo da representação PR/AM nº 1.13.000.000077/2002-46-PRDC/AM nº 440, apresentada pelo CIMI, em relação aos índios Sorowahá. Para citar apenas uma referência da internet: http://www.br101.org/miss-veneno-lento-letal-suruwah.html.

A única divergência entre o seu texto e a minha posição, pelo que entedi, é apenas no que se refere à defesa da utilização do direito penal para solucionar o problema. Não utilizar o direito penal não significa ser a favor de algo. Nem tudo que é condenável moralmente, ou mesmo ilegal, deve ter necessariamente tratamento de fato criminoso. Isso se aplica, ao meu ver, a muitos temas. No caso específico dos índios Hakani e das poucas etnias que praticam o enterro de crianças não é nem preciso afastar o direito penal, pois a própria norma penal os torna inimputáveis: eles não possuem um grau de contato suficientemente elevado que os permita compreender o caráter ilícito do que fazem. Aliás, eles à luz da cultura deles acreditam que fazem um bem às crianças ou à tribo. Nesse contexto, o trabalho deve ser de convencimento, diálogo, não de aplicação do direito penal a quem não é capaz de compreendê-lo, pois isso seria "kafkaniano".

Talvez uma outra divergência seja pensar que as culturas que nos antecederam podem virar história. Nenhuma cultura é completa, embora todas elas pensem que são, ou seja, todas são etnocentristas. Temos muito que aprender com todas as culturas, inclusive com as culturas indígenas. Aliás, as culturas não são imutáveis, ao contrário, são dinâmicas e se influenciam mutuamente, dando ensejo ao fenômeno do empréstimo cultural. Além disso, servem de referência recíproca, e, por isso, se não houver o "outro", o "diferente", eu perco a minha própria individualidade. A homogeneização do mundo em uma única cultura seria muito triste e chato. A dignidade do ser humano só faz sentido porque cada um de nós é um ser único, insubstituível, logo...diferente de todos os outros.

Tenho um imenso material sobre direitos indígenas, direitos humanos, multiculturalismo, etc. Mando dois textos em anexo, que talvez sejam interessantes para você. Sugiro, ainda, a leitura do Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU de 2004, que enfoca o multiculturalismo (download gratuito em: http://www.pnud.org.br/rdh/), bem como do livro organizado por Boaventura de Souza Santos, Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003)

Karina Merlo disse...

Caro colega Robério,
Concordo em grande parte do que fala. Seria até asneira minha divergir, mas caminhamos para um mundo cada vez mais globalizado e patenteado. As diferenças culturais tendem a diminuir e as econômicas a aumentar. Não consigo aceitar, na minha capacidade limitada de entendimento, que essas práticas ofensivas culturais devam prevalecer sobre o valor da vida de um ser humano.
Li o relatório sobre O Veneno Lento e Letal dos Suruwahá hoje à tarde e publiquei-o no meu banco de artigos disponibilizando-o para os internautas:
http://www.scribd.com/doc/6527992/Missao-O-Veneno-Lento-e-Letal-Dos-Suruwaha2008
Mas não me manifesto quanto ao suicídio, afinal quem quiser tirar a sua própria vida que o faça independentemente dos motivos alheios, não me importando sobre os seus porquês.
O que me incomoda é atentar contra a vida alheia. Afinal, a maldição já está imposta pelo que eles fazem, e não caso não o façam. Deve ser um verdadeiro caos lidar com esses casos. Sei que o conflito cultural embota o meu entendimento, porém fico pensando no risco que correm esses missionários que, em prol do que defendemos na nossa cultura, tentam incutir um pouco mais de civilidade a esses povos atrasados. Verifiquei que essas ações devem ser monitoradas pela Funai, pois é CRIME intervir nos seus cultos e crenças.
Afff... que ciranda!
Faço parte do PNUD como voluntária. Vou dar uma lida no link que me enviou.
Obrigado por tamanha atenção.
Abraços,
Karina

Anônimo disse...

Karina,

Confesso a vc que não assisti às cenas finais do vídeo, pois aviltam a condição do ser humano - ainda mais envolvendo crianças!

Parabéns pelo blog, texto e imagens reflexivas.

Aquele abraço,

Paulo Cronemberger

Anônimo disse...

Olá Karina.

Sim, é horrivel!!!! Ví o filme... é täo horrivel como o que acontece em Somalía, Etiopía e Sudán. É costume em muitos povos daqueles paizes fazer mutilaçöes as mulheres nos organos sexuais... quando eu vi aquele filme, lembrei da historia de Waris Dirie, uma mulher que nasceu na Somalía e pôde contar sua historia na Inglaterra.
http://tilz.tearfund.org/Portugues/Passo+a+Passo+21-30/Passo+a+Passo+24/Circuncis%C3%A3o+feminina+O+que+devemos+pensar.htm

Veja a historia de Waris Dirie: http://es.youtube.com/watch?v=ojRYxEseWa0
Sim, a verdade é que há muitas coisas horriveis que acontecem dia a dia, entäo é importante näo voltar os olhos para outro lado e pelo menos tentar de que näo fique na escuridäo...
Na Argentina, é muito conhecido o tango chamado "Cambalache" feito pelo Enrique Santos Discépolo.
Esse tango é uma cançäo de protesto, com uma ideia escura do futuro, mas... graças a Deus existem outras cançöes!!!!!
http://es.youtube.com/watch?v=rYUzHpCBx7s uma cançäo cantada na ESMA em Buenos Aires... a ESMA foi a "Escola de Mecánica da Armada" centro de tortura no governo militar e agora é museo da memoria...
E para finalizar veja esta."Solo le pido a Dios" (eu só peço a Deus)
http://es.youtube.com/watch?v=04XLZAKqxJQ
http://es.youtube.com/watch?v=MomqKrJaU4I
Tenha uma ótima semana!!!!
Alejandro

Ana Maria C. Bruni Territorio Mulher disse...

Muito menos na Bahia