Já estudei o tema, que se denomina resultados tardios, em meu livro Imputação objetiva, quando da sua 1.ª edição. Segue excerto entre aspas, anotando que excluí todas as notas de rodapé, conservando-se os autores na obra original:
"Na maioria das vezes, nos delitos materiais, o resultado é imediato à conduta. Assim, no crime de homicídio, em regra, a morte ocorre momentos depois do comportamento (minutos ou horas). Não é raro, entretanto, que o evento venha a acontecer muito tempo depois da ação, surgindo o que a doutrina denomina casos com resultado tardio. Assim, é possível que a vítima, alvejada a tiros de revólver, venha a morrer, por causa de infecção nos ferimentos, um ano após a conduta do autor.
Exemplos:
1) um terrorista coloca bomba num edifício, que, por falha do mecanismo, não explode. Anos depois, em face de várias circunstâncias, o artefato detona, matando várias pessoas;
2) um mecânico, para matar seu inimigo, manipula o sistema de freios de seu veículo. A vítima viaja para o exterior e, anos depois, retornando, vem a morrer ao dirigir o veículo;
3) a vítima de uma explosão causada por um terrorista vem a falecer muitos anos depois, em conseqüência das lesões sofridas;
4) vitimada por um acidente de trânsito, uma pessoa permanece em coma por vários anos, vindo a falecer.
Há, na teoria da imputação objetiva, duas posições:
1.ª) O autor só responde pelo primeiro resultado. No caso dos tiros, v.g., com as lesões corporais produzidas pelos projéteis, o fato está concluído, respondendo o agente nos limites da lei proibitiva que pretendeu infringir. De maneira que, a impedir resultados tardios, estaríamos fora do alcance da norma (âmbito de proteção da norma incriminadora), pois faltaria a dimensão temporal da imputação.
2.ª) O agente responde pelos resultados tardios. Exemplo: sem solução de continuidade, a pessoa falece depois de uma longa enfermidade causada por uma lesão.
O desfecho é diferente quando há solução de continuidade, não respondendo o autor da primeira lesão pelo evento posterior. Exemplo: num acidente culposo de veículo, a vítima sofre uma lesão que a leva à amputação de uma perna. Anos depois, usando muletas, cai e sofre grave ferimento. O autor culposo da primeira lesão não responde pela segunda. É inegável o nexo de causalidade objetiva entre a conduta inicial e o resultado final. Inexiste, entretanto, a realização do risco, i.e., o segundo resultado não se encontra no âmbito de proteção da norma incriminadora, que só proíbe eventos diretos. O segundo evento ingressa no terreno dos riscos comuns que a vida cotidiana proporciona.
Segundo JESÚS-MARÍA SILVA SÁNCHEZ, as hipóteses podem ser classificadas nos seguintes grupos:
1.º) A vítima sofre uma lesão que lhe acarreta dano físico permanente, como a amputação de uma perna. Tempos depois, por causa do defeito físico, não consegue fugir de um incêndio, vindo a falecer.
2.º) A segunda lesão, produzida dias, meses ou anos depois do primeiro fato, deriva do primeiro dano físico ou fisiológico, não curado, aliado a um novo fator causal. Exemplo: uma criança é internada num hospital com intoxicação vitamínica causada por erro do farmacêutico, falecendo em conseqüência de gripe contraída durante sua estada.
3.º) Casos em que a vítima, em conseqüência do primeiro fato, sofre danos fisiológicos estacionários que lhe reduzem o tempo de vida, vindo a falecer vinte anos depois da primeira agressão. Sem esta, viveria mais quarenta e não vinte anos.
Exemplos:
1) um jogador de futebol, em conseqüência de uma falta grave, sofre comoção cerebral e entra em estado de coma, morrendo dez anos depois;
2) um comerciante vende, como própria ao consumo, mercadoria nociva à saúde. Várias pessoas, anos depois, falecem, em conseqüência de doença causada pela ingestão do produto;
3) uma pessoa, sabendo ser portadora de AIDS, mantém relações sexuais com outra, silenciando a respeito da doença. A vítima contrai o mal e vem a morrer doze anos depois.
Há diferença entre os 1.º e 2.º grupos, de um lado, e o 3.º, de outro. Naqueles, o resultado é produzido de maneira indireta pela primeira lesão, a par de fatores externos supervenientes (incêndio e gripe); no último, o efeito, embora tardio, deriva direta e exclusivamente dos danos fisiológicos iniciais, inexistindo fator externo superveniente.
No primeiro grupo, embora presente a relação de causalidade material, inexiste imputação objetiva do resultado, incidindo o princípio do âmbito de proteção da norma, que não tutela efeitos tardios indiretos. Não é correto, uma dezena de anos depois do primeiro fato, punir alguém por homicídio quando da primeira lesão resultou perda permanente de função, intermediando uma nova causa que diretamente produziu o evento mais grave.
No segundo grupo, encontramos hipóteses de inexistência de realização de risco. No exemplo, não há imputação do resultado morte da criança, que não refletiu a natureza e a gravidade do risco resultante da conduta culposa do farmacêutico.
O terceiro grupo, como ficou consignado, diferencia-se dos demais, tendo em vista que o evento final, embora tardio, mantém relação de exclusividade e nexo direto com a conduta inicial, sem interferência de causas posteriores.
Neste último grupo, é inegável o nexo de causalidade material entre a conduta e o resultado. Irrecusável também a imputação objetiva do evento. Este refletiu o risco produzido pela conduta e se encontra no âmbito de proteção da norma incriminadora. Há, contudo, de se questionar a existência de interesse para o Direito Penal em punir um fato cujo resultado vem a ocorrer anos depois do comportamento. São episódios diferentes matar alguém instantaneamente e lhe causar a morte dezoito anos depois, em conseqüência de uma doença contraída pelas lesões. Considerando que o segundo fato apresenta uma antijuridicidade material de menor relevância, JESÚS-MARÍA SILVA SÁNCHEZ propõe, de lege ferenda, uma redução de pena, seja o crime doloso ou culposo.
Entre nós, de lege lata, é impossível a redução da pena. O autor responde pelo resultado final, sem que a sanção seja diminuída por eventual período temporal entre a conduta e o resultado.
Esse tema pode produzir reflexos no campo da prescrição e da coisa julgada. Em relação à prescrição, de ver-se que, nos termos do art. 111, I, do Código Penal, o prazo extintivo da pretensão punitiva começa a correr da data da produção do resultado. Quanto à coisa julgada, é possível que a vítima de tentativa de homicídio venha a falecer depois da condenação irrecorrível do autor da agressão. Nesse caso, é duvidosa a aceitação da exceptio rei iudicatae, pois os fatos, com a morte da vítima, não são os mesmos."
* Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo - Aposentado. Doutor "Honoris Causa" em Direito pela Universidade de Estudos de Salerno - Itália. Presidente e Professor do Complexo Jurídico Damásio de Jesus. Autor de diversas obras.
Fonte: Jornal Carta Forense