Roberto Delmanto seguiu a tradição da família e dedicou sua vida à advocacia criminal. Filho de Dante Delmanto e irmão de Celso Delmanto, também formou-se pelo Largo São Francisco. O escritório da família atende desde 1937 e foi aberto pelo pai, lembrado pela atuação em júris populares e também no período da ditadura, ganhou uma efígie no salão do Tribunal do Júri do Tribunal de Justiça de São Paulo.
Seu irmão Celso deu continuidade ao trabalho desenvolvido pelo pai, mas com foco na área acadêmica. Foi ele quem começou com a tradição dos Códigos Penais comentados na família. Roberto teve a oportunidade de trabalhar com os dois ilustres penalistas, e não teve dúvida, seguiu os seus passos.
Roberto foi vice-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp), integrante do Conselho de Política Criminal e Penitenciária do Estado de São Paulo e do Conselho Superior de Coordenação das Atividades, no Brasil, do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e o Tratamento do Delinquente.
Em 1990, recebeu da Associação dos Advogados Criminais do Estado de São Paulo (Acrimesp) o título de advogado criminal do ano e, em 2003, foi homenageado em Sessão Solene da Câmara dos Deputados Federais, por sua atuação em defesa de presos políticos nas décadas de 1960 e 1970.
Em entrevista à Consultor Jurídico, o advogado abordou as recentes mudanças na legislação penal, comentando e expondo o seu ponto de vista:
ConJur — Qual é a sua posição sobre o aborto?
Roberto Delmanto — Além das hipóteses que o Código Penal prevê, quando a gravidez é resultado de um estupro ou na hipótese do perigo de vida para a gestante, nos casos de anencefalia, existe uma cláusula supralegal de exclusão de culpabilidade por inexigibilidade de conduta de diversa. Essa gestação representaria para o casal um sofrimento de tal espécie que não seria justo exigir da mulher e nem do marido passar nove meses esperando aquela criança nascer sem cérebro.
ConJur — E sobre a eutanásia?
Roberto Delmanto — A eutanásia é admitida em alguns países quando há consentimento do paciente terminal ou da família. Na eutanásia se provoca a morte da pessoa, se antecipa a morte da pessoa pela administração de uma droga. No Brasil é crime, mas poderá configurar homicídio privilegiado, que permite a redução da pena quando o autor é impelido por motivo de relevante valor social ou moral. O que se admitindo hoje é a ortotanásia, que é reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina uma conduta médica ética. A ortotanásia é quando o doente se encontra em processo natural de morte. E esse processo recebe uma contribuição do médico no sentido de deixar que esse estado se desenvolva no seu curso natural.
ConJur — Há alguma decisão no Brasil no sentido de a eutanásia não ser considerada crime e o acusado ser absolvido?
Roberto Delmanto — Na eutanásia não. Mas a distanásia, que é a conduta de prolongar artificialmente o processo da morte, não é crime. Apesar de eu considerá-la uma barbaridade. Prolongar artificialmente a vida da pessoa, sabendo que ela não tem chance de cura. A ortotanásia vem sendo admitida pela doutrina no sentido de que o médico não força uma morte artificial, não apressa, mas também não prolonga. Ele evita certos procedimentos, o que acho muito digno. É a posição que nós definimos no código.
ConJur — O entendimento do Conselho Federal de Medicina pode servir de base para uma decisão em favor do réu?
Roberto Delmanto — Pode. Embora o Conselho Federal de Medicina não faça parte do Judiciário, é um ente importante nas suas atribuições e que rege toda essa parte ética da profissão do médico. Tem que haver hamornização entre o Judiciário e o Conselho.
ConJur — E como o senhor avalia a nova Lei de Crimes Sexuais que unificou os crimes de estupro e atentando violento ao pudor?
Roberto Delmanto — Na verdade, eram dois crimes diferentes apenados com a mesma pena. Uma pena severa. Havia uma dificuldade, e a jurisprudência tentava minimizar a chamada “passada de mão” sobre as vestes, porque não teria sentido considerar aquilo atentado violento ao pudor. Se o sujeito cometesse um atentado violento ao pudor, que não fosse um prelúdio ou início de uma relação, ele acabava respondendo pelos dois delitos. Só que antigamente como eram crimes do mesmo gênero, mas não da mesma espécie, muitas vezes não se reconhecia a continuidade. Agora surgiu essa discussão, que ainda vai chegar ao Supremo Tribunal Federal. Outra alteração importante da lei, que é bom ressaltar, é que os homens também podem ser vítimas de estupro.
ConJur — No Superior Tribunal de Justiça, as duas turmas que tratam de processos criminais não se entendem sobre a aplicação da nova lei.
Roberto Delmanto — A divisão entre as turmas acontece quando há coito anal ou felação e depois o estupro, o coito vaginal, nos casos que envolvem mulheres. Uma turma entende que o acusado responde como se fossem dois crimes, diferente do que a nova lei prevê. E outra entende que haveria continuidade. Nos casos em que o indivíduo passou a mão no seio ou coisa parecida, mas foi um prelúdio para chegar a uma relação sexual, as turmas consideram um crime só. Não há divergência.
ConJur — E como o senhor entende?
Roberto Delmanto — Dependendo das circunstâncias pode haver um crime único, quando os atos libidinosos foram praticados como prelúdio da cópula. Ou ainda concurso de crimes, quando houver coito anal e vaginal e o ato libidinoso fora da própria progressão da conjunção carnal.
ConJur — Nesse caso, seriam duas penas diferentes?
Roberto Delmanto — Sim, seria o crime continuado. Houve um movimento feminista tentando agravar as penas, mas que acabou melhorando as penas. As pessoas que estão cumprindo pena com base na lei antiga querem a retroatividade da nova lei, em seu benefício. Alguns desses pedidos já foram deferidos pela Justiça. Mexer na lei é uma coisa delicada. Tratou-se das coisas com excesso de civilidade e houve um resultado inverso. Hoje, o estupro englobou o atentado violento ao pudor, ou seja, se for uma passada de mão o juiz tem que considerar atípico ou desclassificar por uma contravenção.
ConJur — A lei deveria ter ficado como estava?
Roberto Delmanto — A mudança não foi feliz. A jurisprudência é o Direito em ação.O juiz tem de analisar o texto da lei com alicerce nas regras básicas do Direito Penal. Como se pode negar a continuidade se agora eles são crimes da mesma espécie? Acredito que vai predominar a interpretação de que se o ato libidinoso for um prelúdio da relação houve um crime só. E se houver todas as condutas, um ato libidinoso de não prelúdio da relação sexual propriamente dita e o coito vaginal, ele vai responder por um crime continuado. A pena seria aumentada. Mas essa discussão será resolvida pelo Supremo Tribunal Federal.
ConJur — O senhor acredita que o Supremo Tribunal Federal terá uma interpretação mais garantista dessa lei?
Roberto Delmanto — O Supremo está se tornando cada vez mais uma Corte Constitucional. Lá só chegam violações ou ameaça de violação a Constituição, então, ele tem de ser um Supremo garantista. Os Tribunais Estaduais e os Tribunais Regionais Federais, muitas vezes, são mais rigorosos na interpretação da lei do que os Tribunais Superiores e o Supremo. É preciso harmonizar a jurisprudência.
ConJur — Como o senhor analisa as decisões de juízes de primeira e segunda instâncias que vão de encontro ao que decidem o STJ e o Supremo?
Roberto Delmanto — Todo juiz de qualquer instância deve ter independência para decidir de acordo com a sua consciência. Mas normalmente os juízes procuram seguir a doutrina, a jurisprudência. Mas não há essa obrigação, a não ser nos casos de Súmulas Vinculantes, que ainda são poucas.
ConJur — Recentemente, o presidente do STF, ministro Cezar Peluso, reclamou de denúncias mal feitas, que acabam gerando uma sensação de impunidade no país. O senhor entende que os trabalhos da Polícia e do Ministério Público precisam melhorar?
Roberto Delmanto — O estado de São Paulo é um dos que pior remunera os seus policiais civis e militares, o que gera um desestímulo para a carreira. O policial que tiver boa formação será sempre correto. Já aquele que tiver má formação terá facilidade para entrar para a corrupção. O instituto de criminalística é bastante bom, com técnicas bem modernas. Mas o sistema não tem dado a importância devida à Polícia, que é uma instituição com muito poder, já que o Ministério Público e o juiz pouco intervêm no inquérito. No geral, eles só interferem na investigação quando há um pedido de prazo. Daí, passa pelas mãos do promotor, pelas mãos do juiz, que olham de uma maneira geral. Mas eles só são provocados se há um pedido de Habeas Corpus, uma reclamação seja do suspeito, da família ou da própria da vítima.
ConJur — Por vezes, o papel do MP não se confunde com o da Polícia?
Roberto Delmanto — Em determinados casos o Ministério Público em vez de se servir do inquérito policial, como está previsto na Constituição, faz ele mesmo as investigações. Mas há também juízes que no afã de tornarem mais eficazes a ação policial fazem intervenções no inquérito. De fato, há essa confusão de papéis entre o delegado, o promotor e o juiz. Isso não é bom.
ConJur — Na hora que recebe a investigação feita pela Polícia, o promotor não deveria ter o cuidado de analisar se não há falhas que impedem o seu recebimento pela Justiça? Não são raros os casos em que o juiz rejeita a denúncia porque está mal formulada.
Roberto Delmanto — Quando termina o inquérito policial, o delegado é obrigado a fazer um relatório no qual informa o que foi investigado, quem foi investigado, quais foram as conclusões e se vai ou não indiciar alguém. O promotor ou o procurador pode tomar três atitudes com esse relatório. Se ele entender que o inquérito já tem suficiente prova da materialidade do crime ou indício suficiente de autoria, ele denuncia. Se ele entender que o inquérito foi bem feito, mas não há materialidade em nenhum crime ele pede o arquivamento. Entretanto, se ele achar que o inquérito está incompleto, poderá solicitar novas diligências. O inquérito volta para a Polícia, mas o delegado está limitado a cumprir as requisições deferidas pelo juiz. O inquérito arquivado poderá ser reaberto se surgirem novas provas, mas apenas se o prazo não tiver prescrito.
ConJur — E como fica a situação com a nova lei [Lei 12.234/2010] que altera o prazo prescricional e dá mais tempo para a Polícia investigar?
Roberto Delmanto — Na fase policial, entre o fato e o recebimento da denúncia, só existe a prescrição pelo máximo da pena. A Polícia tem muito mais tempo de investigar o crime do que o juiz. O delegado e o Ministério Público ganharam um prazo excessivamente dilatado. Esse foi um desserviço ao Direito Penal e à Justiça. Não seria justo, nem moral e nem ético a pessoa ficar eternamente com a espada de Dante na cabeça e um processo. A constitucionalidade dessa lei ainda está sendo discutida.
ConJur — Qual sua opinião sobre a prescrição virtual?
Roberto Delmanto — A prescrição virtual foi uma construção da jurisprudência. Reconhece que faltou interesse do Estado de agir, porque gastou-se tempo demais e isso não vai produzir efeitos.
ConJur — Os clientes ficam satisfeitos com a prescrição, ou eles preferem ser absolvidos?
Roberto Delmanto — Muitas vezes o cliente não se conforma com a prescrição. Mas na chamada prescrição da pretensão punitiva é como se o processo não tivesse existido. A pessoa é tão primária como era antes. Claro que para o lado moral, para o homem de bem que foi injustamente condenado, não se conforma.
ConJur — O senhor concorda com a reforma do Código de Processo Penal que está se desenhando?
Roberto Delmanto — Os pontos positivos são poucos, mas, entre eles, está a criação do juiz de garantia. O juiz que decreta a prisão temporária, preventiva ou que ordena uma busca e apreensão não é o mesmo que irá julgar. Na prática, vai ter um juiz para vigiar o andamento do inquérito policial. Essa instituição do juiz de garantia seria boa.
ConJur — E quais são os pontos negativos do projeto?
Roberto Delmanto — Sempre fui contra reformas pontuais, porque o código é um corpo com uma construção coerente e com uma linha de raciocínio. Algumas mudanças são necessárias porque mudou o contexto social e surgiu um novo tipo de crime. Mas elas são sempre perigosas, porque o resultado é uma colcha de retalhos. Em tese, uma reforma do Código de Processo Penal, que foi um código feito na ditadura, de inspiração totalitária, uma cópia do código fascista italiano com algumas modificações, é bem-vinda. No Brasil, o índice de criminalidade é alto, o que, a meu ver, é decorrente basicamente das enormes diferenças sociais. E, muitas vezes, a tendência do Congresso é reagir a isso endurecendo. Vejo com muita preocupação o rumo que vai tomando esse projeto de Código de Processo Penal.
ConJur — Quais outros pontos da reforma o senhor destacaria?
Roberto Delmanto — Estão acabando com os Habeas Corpus. Apenas na última ditadura militar no Brasil o Habeas Corpus foi suspenso para os chamados crimes contra a segurança nacional. E agora, sob o argumento de que o HC é que aumenta o volume de trabalho dos tribunais, querem limitar o seu uso apenas para os casos em que a pessoa for presa ou estiver na eminência de ser presa. Vão limitar o uso do instituto que é a mais bela das ações em prol da liberdade, que está presente em todos os povos. Vamos deixá-lo atrofiado, quase que eliminado no seu aspecto prático.
ConJur — Há a tendência, tanto na reforma do CPC quanto na do Código de Processo Civil, de reduzir o número de recursos para que o processo ande com maior rapidez. É um bom caminho?
Roberto Delmanto — Não. Na área penal, a Justiça não pode ser excessivamente rápida, porque as infrações penais são aquelas que abalam mais a sociedade. São muito perigosos esses julgamentos feitos no calor dos fatos, na comoção pública ou nas informações da mídia. A pior tragédia do processo penal não é a morosidade e nem a impunidade, é a possibilidade de haver um erro judiciário. A rápida aprovação da Lei Ficha Limpa não levou em conta o postulado previsto na Constituição Federal que se chama presunção de inocência. Inventaram a expressão colegiado para falar dos tribunais. Mas se não transitou em julgado, a pessoa ainda pode ser absolvida.
ConJur — Divulgar para imprensa uma investigação que está começando, quando não há sequer denúncia, é uma exposição prejudicial? Alguém deveria ser responsabilizado nestes casos?
Roberto Delmanto — A imprensa é importantíssima. Temos sempre de preservar a sua liberdade. Porém, cito o exemplo atual mais gritante de comoção social e de envolvimento emocional da imprensa: o caso Nardoni. Acredito que não tiveram um julgamento justo e imparcial. Se os jurados tivessem absolvido o casal, eles teriam segurança para sair do fórum naquele dia? Depois que foram condenados não se falou mais no assunto. Fora os casos que envolvem sigilo bancário, sigilo de comunicação, os demais devem ser abertos. A regra deve ser a liberdade de informação. Mas os jornalistas têm essa responsabilidade: podem fazer um bem à sociedade ou destruir injustamente uma família, uma tradição, uma pessoa. Há muitos jornalistas despreparados, escrevendo, por exemplo, que um juiz deu um parecer. Hoje existe uma preocupação em dizer o “suposto” assassino, mas muitas vezes isso pode causar prejuízo.
ConJur — Essa exposição do caso pode trazer reconhecimento para o trabalho da Polícia ou do Ministério Público.
Roberto Delmanto — Todo mundo gosta de holofote, de sair na televisão, é natural do ser humano. Agora, na parte do processo penal há limitações na fase judicial. No caso do Nardoni chegou-se a decretar sigilo, mas dois dias depois o promotor estava dando entrevista. O papel de imprensa é fundamental, mas o grau de liberdade que ela tem corresponde ao seu grau de responsabilidade social. Em muitos casos, no campo criminal, a imprensa tem sido pelo menos corresponsável pelo excesso de comoção pública, que acaba prejudicando a própria concretização da justiça, como o exemplo da Escola Base. Isso deveria ser discutido nas redações, nas televisões, nas escolas de jornalismo.
ConJur — Como o senhor vê as gravações das conversas entre advogado e cliente em presídios federais, com autorização judicial?
Roberto Delmanto — São absolutamente inconstitucionais.
ConJur — Ainda que o advogado esteja sendo acusado de envolvimento no crime?
Roberto Delmanto — Há certas coisas que na busca do bem comum não se pode abrir mão, como o sigilo da conversa entre o cliente e o advogado. A nossa consciência é um território indevassável, ninguém pode entrar sem a nossa permissão, seja quem for, a autoridade que for, a que pretexto for. Mas o advogado não está acima da lei, ao contrário, tanto o advogado como o promotor e o juiz tem que ser os primeiros a respeitar a lei. No meu escritório defendemos acusados de crimes. Nós não concordamos com crimes, nós não praticamos crimes, nós não colaboramos com a prática de crimes. O advogado tem que ser muito rigoroso na sua conduta ética. Entretanto, se há provas de que determinado advogado está servindo de pombo correio para um preso ou prestando serviço para uma organização criminosa, ele deve sofrer sanções administrativas dentro da Ordem dos Advogados.
ConJur — Como harmonizar o direito individual com o coletivo?
Roberto Delmanto — Nenhum direito constitucional é absoluto, nem a vida, que é o maior dos direitos, é absoluta. Se você matar alguém, mas matar em legítima defesa, terá preponderância. É a eterna busca das sociedades civilizadas essa compatibilização dos direitos constitucionais, as garantias, algumas que são, a vida, a liberdade, a saúde, mais relevantes do que outras, do que o sigilo das comunicações. Então, é essa busca constante onde o direito de certa maneira está na frente disso.
ConJur — O Senado aprovou uma PEC que acaba com a aposentadoria compulsória como punição para juízes envolvidos em crimes. O senhor acha que um juiz tem que ser punido?
Roberto Delmanto — Um juiz que é posto em disponibilidade ou é aposentado compulsoriamente já tem uma força de uma punição moral muito grande. Muitas vezes, o juiz teve toda uma vida correta, mas falhou, claudicou em determinado ato. Colocá-lo em disponibilidade enquanto se está apurando os fatos e excluí-lo depois de tudo é uma punição forte. Tirar os vencimentos proporcionais dessa pessoa que teve anos e anos onde nada se apurou, acho que pode ser um pouco exagerado, temos de ter certa proporcionalidade.
Fonte: Conjur