por Luiz Flávio Borges D'Urso*
Nova investida autoritária ronda o inalienável direito de defesa, ameaçando, mais uma vez, a plenitude do Estado Democrático. Trata-se da instalação de aparelhos de gravação de áudio e vídeo nas salas destinadas a conversas reservadas entre advogados e clientes presos – os parlatórios –, nos presídios federais. São patentes a violação do direito de defesa e a afronta contra o sigilo profissional entre cliente e seu advogado.
O fato merece veemente repúdio não apenas por parte da representação dos advogados, mas por todos os setores que defendem a Cidadania e as liberdades individuais em nosso país em face dos danos e das perversas implicações que gera. Em primeiro lugar, fere gravemente o artigo 133 da Constituição Federal, o qual fixa de forma indiscutível a inviolabilidade do advogado em "atos e manifestações no exercício da profissão". O mesmo vale para a Lei Federal conhecida como Estatuto do Advogado, que assegura o direito de comunicação, pessoal e reservada, entre cliente e seu defensor, mesmo em situação prisional caracterizada como de incomunicabilidade.
O sigilo profissional não constitui somente um dever ético-contratual. Ultrapassa de longe esta condição ao cumprir função social, sem a qual é a própria cidadania a se ver ameaçada. Em outras palavras, sem o sigilo não há como assegurar condições basilares para que a Justiça seja operada: o direito à ampla defesa e ao contraditório.
Tanto é assim que o sigilo profissional do advogado é um dever que alcança todos os eventos que ele, no exercício de seu mister, venha a conhecer até mesmo nos casos em que decline de aceitar a causa. Descumprindo este dever fica o advogado sujeito a processo disciplinar, além de ter de responder pelo crime de violação de segredo profissional – um acerto claro do legislador que, em última análise, quis dar as condições elementares para a salvaguarda do Estado Democrático de Direito.
No cerne da discussão, está um perigoso equívoco. Algumas autoridades erram ao imaginar que esse tipo de escuta entre advogado e seu cliente é eficaz contra o crime organizado. No passado recente, travamos ampla luta para impedir a invasão de escritórios de advocacia pela polícia que, com base em mandados de busca e apreensão, retinham arquivos do profissional em busca de provas contra seus clientes.
Por esse desvio de raciocínio, e no seu limite, não haverá surpresa se tivermos a justificativa de mecanismos de tortura sob o argumento de que violações aos direitos humanos são eficientes armas de combate ao crime ou, mais execrável, se justificam em determinadas circunstâncias. Sabemos que não se justificam em hipótese alguma, a não ser em nome de desvio no caminho do aperfeiçoamento democrático que toda sociedade contemporânea deve perseguir sem admitir retrocessos.
Infelizmente, conhecemos no Brasil situações que hoje repudiamos e lutamos para que não se repitam. Durante o período ditadura, por exemplo, cidadãos, sob o pretexto de convocação como testemunhas, eram presos e forçados a confessar crimes. Naquela conjuntura, eram os advogados a única chance que esses cidadãos vislumbravam de defesa diante de condição tão desamparada. E foram os advogados, não poucos colocando em risco suas vidas, uma vez que não havia prerrogativas que os protegessem na ocasião, os primeiros a propugnar pelo Estado Democrático de Direito.
O que está em questão, portanto, não é a discussão de eficiência ou eficácia de determinados métodos para combater o crime: são os princípios básicos da Justiça e da Democracia que são destroçados, na medida em que se admite flexibilizar ou quebrar as normas que são o pilar central do Estado de Direito.
Engana-se quem confunde prerrogativa profissional, como o sigilo entre advogado e cliente, com privilégio ou, pior, o considera fator que justifica a prática de conluio com o crime. Esse modo de ver a nossa profissão é um erro imperdoável, cuja consequência se faz sentir na suspeição sobre todos os advogados. Como em qualquer categoria profissional, há maus advogados. Mas este fato não pode servir de pretexto para o cometimento de um crime – a violação do sigilo profissional – em nome do combate ou investigação de supostos outros ilícitos.
Se é verdade que o sigilo profissional é uma das prerrogativas cruciais para o exercício da atividade de advogado, é mais forte, ainda, a hipótese de que, sem ele, não há como assegurar, em uma democracia, as condições mínimas de defesa dos acusados de crimes.
Admitir a quebra deste sigilo, mesmo que autorizado judicialmente, é compactuar com a inconstitucionalidade e admitir que podemos retroceder a procedimentos típicos de regimes autoritários. Mais grave, ainda, significa submeter-se a iniciativas que fatalmente resultarão na destruição da incipiente democracia que temos.
* Luiz Flávio Borges D'Urso é advogado criminalista; Mestre e Doutor pela USP; Pesidente da OAB-SP
Fonte: Editora Magister
Nova investida autoritária ronda o inalienável direito de defesa, ameaçando, mais uma vez, a plenitude do Estado Democrático. Trata-se da instalação de aparelhos de gravação de áudio e vídeo nas salas destinadas a conversas reservadas entre advogados e clientes presos – os parlatórios –, nos presídios federais. São patentes a violação do direito de defesa e a afronta contra o sigilo profissional entre cliente e seu advogado.
O fato merece veemente repúdio não apenas por parte da representação dos advogados, mas por todos os setores que defendem a Cidadania e as liberdades individuais em nosso país em face dos danos e das perversas implicações que gera. Em primeiro lugar, fere gravemente o artigo 133 da Constituição Federal, o qual fixa de forma indiscutível a inviolabilidade do advogado em "atos e manifestações no exercício da profissão". O mesmo vale para a Lei Federal conhecida como Estatuto do Advogado, que assegura o direito de comunicação, pessoal e reservada, entre cliente e seu defensor, mesmo em situação prisional caracterizada como de incomunicabilidade.
O sigilo profissional não constitui somente um dever ético-contratual. Ultrapassa de longe esta condição ao cumprir função social, sem a qual é a própria cidadania a se ver ameaçada. Em outras palavras, sem o sigilo não há como assegurar condições basilares para que a Justiça seja operada: o direito à ampla defesa e ao contraditório.
Tanto é assim que o sigilo profissional do advogado é um dever que alcança todos os eventos que ele, no exercício de seu mister, venha a conhecer até mesmo nos casos em que decline de aceitar a causa. Descumprindo este dever fica o advogado sujeito a processo disciplinar, além de ter de responder pelo crime de violação de segredo profissional – um acerto claro do legislador que, em última análise, quis dar as condições elementares para a salvaguarda do Estado Democrático de Direito.
No cerne da discussão, está um perigoso equívoco. Algumas autoridades erram ao imaginar que esse tipo de escuta entre advogado e seu cliente é eficaz contra o crime organizado. No passado recente, travamos ampla luta para impedir a invasão de escritórios de advocacia pela polícia que, com base em mandados de busca e apreensão, retinham arquivos do profissional em busca de provas contra seus clientes.
Por esse desvio de raciocínio, e no seu limite, não haverá surpresa se tivermos a justificativa de mecanismos de tortura sob o argumento de que violações aos direitos humanos são eficientes armas de combate ao crime ou, mais execrável, se justificam em determinadas circunstâncias. Sabemos que não se justificam em hipótese alguma, a não ser em nome de desvio no caminho do aperfeiçoamento democrático que toda sociedade contemporânea deve perseguir sem admitir retrocessos.
Infelizmente, conhecemos no Brasil situações que hoje repudiamos e lutamos para que não se repitam. Durante o período ditadura, por exemplo, cidadãos, sob o pretexto de convocação como testemunhas, eram presos e forçados a confessar crimes. Naquela conjuntura, eram os advogados a única chance que esses cidadãos vislumbravam de defesa diante de condição tão desamparada. E foram os advogados, não poucos colocando em risco suas vidas, uma vez que não havia prerrogativas que os protegessem na ocasião, os primeiros a propugnar pelo Estado Democrático de Direito.
O que está em questão, portanto, não é a discussão de eficiência ou eficácia de determinados métodos para combater o crime: são os princípios básicos da Justiça e da Democracia que são destroçados, na medida em que se admite flexibilizar ou quebrar as normas que são o pilar central do Estado de Direito.
Engana-se quem confunde prerrogativa profissional, como o sigilo entre advogado e cliente, com privilégio ou, pior, o considera fator que justifica a prática de conluio com o crime. Esse modo de ver a nossa profissão é um erro imperdoável, cuja consequência se faz sentir na suspeição sobre todos os advogados. Como em qualquer categoria profissional, há maus advogados. Mas este fato não pode servir de pretexto para o cometimento de um crime – a violação do sigilo profissional – em nome do combate ou investigação de supostos outros ilícitos.
Se é verdade que o sigilo profissional é uma das prerrogativas cruciais para o exercício da atividade de advogado, é mais forte, ainda, a hipótese de que, sem ele, não há como assegurar, em uma democracia, as condições mínimas de defesa dos acusados de crimes.
Admitir a quebra deste sigilo, mesmo que autorizado judicialmente, é compactuar com a inconstitucionalidade e admitir que podemos retroceder a procedimentos típicos de regimes autoritários. Mais grave, ainda, significa submeter-se a iniciativas que fatalmente resultarão na destruição da incipiente democracia que temos.
* Luiz Flávio Borges D'Urso é advogado criminalista; Mestre e Doutor pela USP; Pesidente da OAB-SP
Fonte: Editora Magister
Nenhum comentário:
Postar um comentário