sexta-feira, 2 de julho de 2010

A quem interessa uma justiça penal sobrecarregada?


por Rogério Greco*

Quando falamos em democracia, utilizando a velha definição de Abraão Lincoln, podemos entendê-la como o governo do povo, pelo povo e para o povo. Numa democracia tenta-se, a todo custo, preservar os direitos de liberdade dos cidadãos. Ao contrário, quando estamos diante de um regime ditatorial, as leis são editadas com finalidade diversa, ou seja, justamente para limitar, abusivamente, segundo o arbítrio do detentor do poder, essa liberdade.

No Brasil, ao que parece, vivemos uma democracia. No entanto, a política criminal vigente é a mesma adotada nos países onde prevalece o regime ditatorial. A todo instante surgem novas leis penais, proibindo ou impondo determinados comportamentos, sob a ameaça de uma sanção de natureza penal. Vivemos, hoje, infelizmente, uma doença crônica, chamada de inflação legislativa. Se, com a graça de Deus, já não falamos mais em inflação econômico-financeira, esse modelo de inflação foi importado pelo Direito Penal.

Posso afirmar, com toda segurança, que, nem mesmo os juristas mais dedicados conhecem todas as leis penais, todos os tipos penais incriminadores. Esse excesso de leis, por mais incrível que possa parecer, nos leva a uma sensação de anomia, ou seja, de ausência de leis.

A Justiça Penal já não consegue cumprir o seu papel de julgar os fatos criminosos. Dessa forma, ocupam as prateleiras empoeiradas dos cartórios criminais tanto processos que dizem respeito a fatos graves, como aqueles que apuram outros cometidos por organizações criminosas, crimes contra a ordem econômica e financeira, crimes contra a Administração Pública (corrupção, concussão etc.), bem como infrações penais que dizem respeito a fatos de pouca ou, na verdade, nenhuma importância, como ocorre com as contravenções penais.

Recentemente, em 5 de maio de 2010, surgiu a Lei nº12.234, com a finalidade de acabar com a chamada prescrição retroativa, ou seja, aquela que era contada a partir da data do cometimento do fato, até a data do efetivo recebimento da denúncia. Essa prescrição conduzia à extinção da punibilidade fatos que, normalmente, não eram considerados graves, a exemplo das lesões corporais de natureza leve, crimes contra a honra, crimes contra o patrimônio etc.

O cálculo da prescrição pode ser feito de duas formas. O primeiro deles, leva em consideração a pena máxima cominada em abstrato para cada infração penal. O segundo, considera a pena efetivamente aplicada na sentença penal condenatória e, com base nessa pena, todos os cálculos são refeitos, levando-se em consideração todos os marcos que tem por finalidade interromper a prescrição. Esse cálculo era iniciado partindo-se da data do fato em que a infração penal foi praticada, até o primeiro marco interruptivo da prescrição, vale dizer, a data em que a denúncia foi recebida.

Hoje, em virtude da nova Lei, esse lapso temporal não mais será considerado para efeitos de reconhecimento de prescrição, partindo-se da pena aplicada pela sentença penal condenatória recorrível, mas tão somente para efeitos de cálculo relativo a prescrição pela pena cominada em abstrato.

Para efeitos de visualização do que temos afirmado, imagine-se a seguinte hipótese: Alfredo, no dia 10 de março de 2005, praticou um crime de furto (consumado). A pena correspondente ao delito de furto simples varia de 1 a 4 anos de reclusão. A prescrição, considerando-se a pena em abstrato, ocorrerá em 8 anos, de acordo com o disposto no art. 109, V do Código Penal. No entanto, a título de raciocínio, vamos supor que a denúncia tenha sido recebida no dia 10 de abril de 2009, ou seja, pouco mais de 4 anos após a prática do furto. Em 5 de janeiro de 2010, o juiz proferiu a decisão, e condenou o autor do crime ao cumprimento de uma pena de 1 ano de reclusão.

A partir do conhecimento da pena concretizada na sentença condenatória recorrível, isto é, 1 ano de reclusão, teríamos que refazer os cálculos prescricionais e, nosso primeiro ponto de partida seria, justamente, a data do fato, ou seja, a data em que o crime se consumou, vale repetir, em 10 de março de 2005. Se entre a data do fato e a data do recebimento da denúncia tivesse decorrido período igual ou superior a 4 anos (art. 109, V do CP), teríamos que, obrigatoriamente, reconhecer a chamada prescrição retroativa, o que conduzia, fatalmente, à extinção da punibilidade.

Agora, por conta da nova Lei, esse cálculo já não será mais permitido. Assim, ou ocorrerá a prescrição levando-se em consideração a pena máxima cominada em abstrato, ou os cálculos, com base na pena concretizada na sentença condenatória, partirão do primeiro marco interruptivos da prescrição, vale dizer, a data do recebimento da denúncia.

Isso, com toda certeza, conduzirá a um número enorme de condenações, gerando uma situação de calamidade no sistema prisional, se é que isso ainda é possível, uma vez que esse sistema já se encontra em níveis insuportáveis. A grande pergunta é: A quem interessa uma Justiça penal sobrecarregada? A quem interessa a multiplicação dos processos na fase da execução da pena?

Essa multiplicação de processos de pequena importância sobrecarregará a Justiça Penal de tal maneira que os processos entendidos como mais importantes acabarão sendo deixados de lado.

Já chegou a hora (na verdade já passou da hora) de mudar a política criminal típica de um movimento de lei e ordem, de direito penal máximo, a fim de adotar uma outra, de natureza minimalista, elegendo prioridades, punindo os fatos que importem em graves lesões aos bens jurídicos, e deixando que os outros ramos do ordenamento jurídico, a exemplo do civil, administrativo, tributário etc. cuidem daqueles que não possuam a importância exigida pelo Direito Penal.

Não podemos nos esquecer de que, quanto mais processos, mais morosidade, e, consequentemente, mais impunidade dos fatos graves. Como se sabe, o Direito penal é seletivo, e tem o seu público alvo, ou seja, a parcela miserável da população. Essa afirmação é muito fácil de ser comprovada. É só visitar o sistema prisional a fim de saber o percentual de presos que pertencem às classes média ou alta. O número será ridículo. No entanto, pergunta-se: Será que no Brasil ocorre, com freqüência, o crime de corrupção? Será que existem sonegadores? As perguntas poderiam continuar até que abrangêssemos todas as camadas sociais. Contudo, só o pobre, só o miserável é processado e preso.

Está na hora de mudar. Precisamos eleger prioridades, e não existe prioridade maior do que o combate à corrupção. Os corruptos são, na verdade, genocidas. São exterminadores de crianças, de doentes, de idosos. Sua patologia (pois o corrupto é um doente, que nunca se sacia com o que tem, e sempre busca mais) leva ao caos social; conduz a população ao desespero. O corrupto, portanto, com seu sorriso, sua simpatia, seu colarinho branco, continua a posar com ar hipocritamente austero, insensível ao mal que causa na população.

Assim, concluindo, a nova Lei nº 12.234, de 5 de maio de 2010, longe de resolver os problemas que envolvem o Direito Penal, sobrecarregará o sistema prisional com fatos de pouca importância. Além disso, aumentarão, enormemente, os processos que deverão ser julgados pelos Tribunais Estaduais, e também os Superiores, uma vez que a ausência de reconhecimento da prescrição retroativa aumentará o número de recursos. Dessa forma, pergunta-se, mais uma vez: A quem interessa uma Justiça Penal sobrecarregada?

* Procurador de Justiça/MG; Membro fundador do Instituto de Ciências Penais (ICP) e da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais; Mestre em Ciências Penais, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Especialista em Direito Penal (Teoria do Crime), pela Universidade de Salamanca (Espanha); Doutorando pela Universidade de Burgos (Espanha); Palestrante em congressos e universidades em todo o País; Autor de diversas obras jurídicas; Embaixador de Cristo.

Fonte: Blog de Rogério Greco

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