Quem não se comunica...
por Gerivaldo Alves Neiva* O “juridiquês” é um problema para a comunicação. Muitas vezes o usuário não entende absolutamente nada do que lhe foi dito. Outras vezes termina por pensar que uma coisa é outra coisa.
Normalmente, por exemplo, as pessoas sem conhecimento da terminologia jurídica fazem referência a “usocampeão”, ao invés de usucapião. Meretríssimo ao invés de meritíssimo. E assim por diante.
Outro dia me procurou a Escrivã do Cartório para informar que uma pessoa estava me indicando o nome de um “rezador” para substituir o curador de um réu ausente citado por Edital. O argumento era simples: a serventuária informou à parte que o processo estava aguardando a nomeação de um curador, pois a parte contrária havia sido citada através de Edital e se tornara revel. Ora, como não havia “curador” conhecido na cidade, a parte, então, estava sugerindo o nome de famoso “rezador” para substituir o curador. Faz sentido! Rezador e curador desempenham funções semelhantes no sertão.
O nome “réu” não é bem visto em algumas regiões do interior da Bahia. Tem um sentido negativo muito forte. Normalmente é relacionado com criminoso. Certa vez, levei um bom tempo para conciliar as partes em um processo, tendo percebido que em determinado momento o autor mudou o semblante e passou a aceitar as propostas que lhe fazia. Ao final da audiência, celebrado o acordo, o autor me disse que não se importava muito com os termos do acordo, mas estava muito satisfeito em ter presenciado o juiz chamar seu oponente de “réu”.
Além desses casos verídicos, na Internet circulam muitos casos, piadas e modelos de petições absolutamente incompreensíveis de tanto “juridiquês”. É famosa aquela piada da parte que depois de ler a sentença pergunta ao seu advogado se ganhou ou perdeu a causa.
Muitas vezes também acontece o contrário e é o Juiz quem não entende a linguagem do povo ou dá um sentido diferente à expressão utilizada.
No sertão da Bahia, por exemplo, é muito comum as pessoas iniciarem a fala com o vocativo “rapaz” ou “moço”. Já me ocorreu várias vezes, durante a audiência, formular uma pergunta a testemunha e obter como resposta: “Rapaz, eu não sei de nada...” ou “Moço, eu vou contar...”. Já soube de casos de juiz que teria repreendido a testemunha de forma enérgica: “Me respeite! Sou um Juiz de Direito! Trate-me de Doutor Juiz ou Vossa Excelência”. Claro que é um arroubo de autoritarismo absolutamente desnecessário.
Também em algumas regiões de Bahia as pessoas se referem a “enrabar” no sentido de correr atrás. Eu mesmo já fiquei rubro quando uma testemunha me disse, na presença da Promotora de Justiça, na maior naturalidade, que a vítima vivia “enrabando” o réu. Depois de certo desconforto, a Escrivã desfez o mal entendido.
Além do problema da linguagem, que não é pouca coisa, muitas vezes as pessoas, com toda razão, não entendem alguns formalismos e rituais que praticamos. Tento evitar, mas mesmo assim me deparo com expressões incrédulas quando tento justificar, por exemplo, a não realização de um ato judicial por conta de um detalhe incompreensível para a parte interessada. Além disso, muitas vezes as pessoas não entendem a razão de tantas exigências e entraves para ver seu direito amparado. Sua lógica é simples: “Ora, se tenho o direito....”
Lembro que certa vez um senhor insistiu para falar com o juiz e ao final das audiências pedi que ele fosse levado ao meu gabinete. Antes, perguntei ao cartório se existia algum processo de interesse dele, mas a resposta foi negativa. A pessoa queria conversar comigo e pronto.
Seu olhar foi de alívio quando me cumprimentou. Inicialmente, fez questão de observar que era a primeira vez que vinha ao fórum em seus quase 70 anos de idade; que nunca tinha sido intimado em uma Delegacia... Este tipo de orgulho que sabe bem quem é do sertão. Em seguida, contou em detalhes o problema de uma fonte de água que lhe pertencia e que estaria sendo impedido, por um novo vizinho, em conduzir seu pequeno rebanho à dita fonte. Mostrou-me escrituras antigas e tinha convicção do seu direito, pois a fonte fazia parte de sua propriedade e todos na região sabiam disso. Depois de uma boa meia-hora de conversa, concluiu me pedindo para expedir uma ordem, como Juiz de Direito que era, para que o novo vizinho lhe permitisse o acesso à fonte e ficou à espera de uma resposta minha.
Não tinha outra resposta: o senhor precisa contratar um advogado, outorgar-lhe uma procuração e então o advogado vai estudar seu caso e requerer a ação própria, podendo, inclusive, requerer uma medida liminar ou antecipatória de tutela... Não dá para descrever a decepção de nosso amigo!
Vejo, portanto, que temos dois problemas: de um lado, o povo tem dificuldade de entender nossa linguagem e nosso ritual e, de outro lado, nós juízes temos dificuldade de ouvir e entender o povo, causando um distanciamento entre o rito e linguagem que adotamos e o direito pretendido. Não existe sintonia, por fim, entre Lei, Direito e Justiça. Para o povo, tudo se confunde com a Justiça! É isso que se quer!
A razão não é simples e está relacionada, de um lado, ao próprio sentido do Direito em uma sociedade de classes, ou seja, para que serve o Direito? De outro lado, de forma mais específica, vejo que a falta de mecanismos simplificados de acesso ao Judiciário dificulta sobremaneira a compreensão do funcionamento do sistema e, como conseqüência, a garantia dos direitos dos menos favorecidos. Por fim, a formação acadêmica positivista-dogmática do juiz não lhe permite sair do seu pedestal, da redoma em que se isola do mundo, para compreender a linguagem e os anseios do povo.
Enquanto isso, vamos confirmando a tese do filósofo Abelardo Barbosa, o Chacrinha: “quem não se comunica se trumbica”.
O único detalhe a acrescentar é que nesta luta desigual quem quase sempre se “trumbica” são os pobres e desvalidos.
Conceição do Coité, 08 de fevereiro de 2009
* Gerivaldo Alves Neiva é Juiz de Direito em Conceição do Coité –Ba.
Um comentário:
Karina,
obrigado por divulgar a crônica "Quem não se comunica..."
Parabéns pelo blog.
Aliás, seu blog é quase um portal. (rsssssss).
Gerivaldo.
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