sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Direito de recorrer aos Tribunais Superiores em liberdade


por Luiz Flávio Gomes
Por sete votos a quatro, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu, no dia 05.02.09, o Habeas Corpus (HC 84.078) para permitir que um réu já condenado - pelo Tribunal do Júri da Comarca de Passos (MG) à pena de sete anos e seis meses de reclusão, em regime inicialmente fechado - recorra dessa condenação, aos tribunais superiores, em liberdade. Ele foi julgado por tentativa de homicídio duplamente qualificado (artigos 121, parágrafo 2º, inciso IV, e 14, inciso II, do Código Penal).
A polêmica dirimida (corretamente) pela maioria dos membros do STF diz respeito ao seguinte: o réu, depois de já condenado, caso esteja em liberdade, tem direito de recorrer extraordinariamente nessa condição? Tem direito de ingressar com Recurso Extraordinário (ao STF) ou Especial (ao STJ) e permanecer em liberdade? O acórdão confirmatório de uma condenação ou acórdão condenatório, antes do trânsito em julgado, pode ser executado provisoriamente? O efeito só devolutivo do RE ou REsp autoriza a execução imediata de eventual mandado de prisão?
Todas essas questões já vinham sendo enfrentadas no STF (por exemplo: HC 89.754-MC-BA, rel. Min. Min. Celso de Mello, j. 06.12.06). O STJ (com visão puramente legalista) admitia a possibilidade de execução provisória do julgado, mesmo porque se sabe que o RE ou o REsp não possui efeito suspensivo. Esses recursos (por terem caráter extraordinário) não impedem a imediata expedição de eventual mandado de prisão. O art. 675 do CPP (que impede a expedição imediata de mandado de prisão) só tem aplicação quando se trata de recurso com efeito suspensivo. A prisão, como efeito da condenação, não viola a presunção de inocência.
Os acórdãos dos TJs e dos TRFs que mandam prender imediatamente o réu fundamentam a prisão no seguinte: (a) inexistência de efeito suspensivo do RE ou REsp; (b) art. 27, § 2º, da Lei 8.038/1990; (c) art. 637 do CPP; (d) Súmula 267 do STJ; (e) a execução provisória do julgado não ofende o princípio da presunção de inocência. Essa linha legalista positivista, que ignora a Constituição vigente, sempre foi seguida (majoritariamente) pelo STJ (Súmula 267).
O STF, entretanto, desde a perspectiva constitucional, vem afirmando a imprescindibilidade de se demonstrar, em cada caso concreto, a necessidade da prisão cautelar, que possui caráter excepcional (RTJ 180/262-264, rel. Min. Celso de Mello). Mesmo que se trate de prisão decorrente de condenação recorrível (emanada de primeira ou de segunda instância), a prisão só se justifica quando há motivo concreto que revele sua absoluta necessidade (HC 71.644-MG, rel. Min. Celso de Mello; RTJ 195/603, rel. Min. Gilmar Mendes; HC 84.434-SP, rel. Min. Gilmar Mendes; HC 86.164-RO, rel. Min. Carlos Britto; RTJ 193/936).
De acordo com a visão constitucionalista do STF, a prisão, mesmo que fundada em acórdão condenatório ou confirmatório de condenação precedente e tendo como base só o fato de o RE ou o REsp possuir efeito devolutivo, significa execução provisória indevida da pena.
Em situações como a que ora se registra, "o Supremo Tribunal Federal tem garantido, ao condenado, ainda que em sede cautelar, o direito de aguardar em liberdade o julgamento dos recursos interpostos, mesmo que destituídos de eficácia suspensiva (HC 85.710/RJ, Rel. Min. CEZAR PELUSO - HC 88.276/RS, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - HC 88.460/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, v.g.), valendo referir, por relevante, que ambas as Turmas desta Suprema Corte (HC 85.877/PE, Rel. Min. GILMAR MENDES, e HC 86.328/RS, Rel. Min. EROS GRAU) já asseguraram, até mesmo de ofício, ao paciente, o direito de recorrer em liberdade" (HC 89.754 MC-BA, rel. Min. Celso de Mello).
A prisão fundada não em fatos concretos, justificadores da medida extremada da prisão cautelar, sim, exclusivamente "na lei" (que não confere efeito suspensivo ao RE ou ao REsp), viola patentemente a presunção de inocência.
Se o réu está em liberdade, a prisão contra ele decretada - embora fundada em condenação penal recorrível (o que lhe atribui índole eminentemente cautelar) - somente se justifica se motivada por fato posterior, que se ajuste, concretamente, em uma das hipóteses referidas no art. 312 do CPP (STF, HC 89.175-PA, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 06.02.07). Fora disso estamos diante de uma execução provisória indevida da prisão, verdadeira antecipação de pena, que conflita flagrantemente com o princípio da presunção de inocência emanado do art. 8º da CADH assim como do art. 5º, inc. LVII, da CF.
Na decisão do STF de 05.02.09 (HC 84.078-MG) mais uma vez preponderou (sensatamente) a ideologia da equidade (nos votos de Eros Grau, Celso de Mello, Cezar Peluso, Carlos Ayres Britto, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Marco Aurélio). Ficaram vencidos (porque seguidores da ideologia da segurança) os ministros Menezes Direito, Cármen Lúcia Antunes Rocha, Joaquim Barbosa e Ellen Gracie.
Prevaleceu a tese de que qualquer prisão não devidamente fundamentada na absoluta necessidade, antes da sentença condenatória transitada em julgado, contrariaria o artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal (CF), segundo o qual "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".
O ministro Celso de Mello deixou claro, entretanto, que a prisão cautelar processual é admissível, desde que fundamentada com base nos quatro pressupostos previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal - garantia da ordem pública, garantia da ordem econômica, conveniência da instrução criminal e garantia da aplicação da lei penal.
Ao proferir seu voto - o último do julgamento -, o ministro Gilmar Mendes acompanhou o voto majoritário do relator, ministro Eros Grau. Apresentando dados, ele admitiu que a Justiça brasileira é ineficiente, mas disse que o país tem um elevado número de presos - 440 mil. "Eu tenho dados decorrentes da atividade no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que são impressionantes. Apesar dessa inefetividade (da Justiça), o Brasil tem um índice bastante alto de presos. São 440 mil presos, dados de 2008, dos quais 189 mil são presos provisórios, muitos deles há mais de dois, mais de três anos, como se tem encontrado nesses mutirões do CNJ. E se nós formos olhar por estado, a situação é ainda mais grave. Nós vamos encontrar em alguns estados 80% dos presos nesse estágio provisório [prisão provisória]".
"Nos mutirões realizado pelo CNJ encontraram-se presos no estado Piauí que estavam há mais de três anos presos provisoriamente sem denúncia apresentada", relatou ainda o ministro. "No estado do Piauí há até uma singularidade. A Secretaria de Segurança do Estado concebeu um tal inquérito de capa preta, que significa que a Polícia diz para a Justiça que não deve soltar aquela pessoa. É um mundo de horrores a Justiça criminal brasileira. Muitas vezes com a conivência da Justiça e do Ministério Público".
Sendo o processo penal de cada país um índice de aferição do seu nível de democracia e de civilização, a decisão do STF ora comentada marcou um ponto favorável ao Brasil nesse importante ranking. Prisão antes do trânsito em julgado final somente quando absolutamente necessária.
Fonte: GOMES, Luiz Flávio. Direito de recorrer aos Tribunais Superiores em liberdade. Disponível em http://www.lfg.com.br. 06 de fevereiro de 2009.

Um comentário:

Anônimo disse...

Eu me pergunto onde está o MP nisso tudo, o "CUSTUS LEGIS", que tem obrigação de fazer a lei ser cumprida sempre com bom senso no intuito de proteger a sociedade, entretanto, só faz pedir a condenação com sua mão pesada e arrogante ao ponto de se intitular o 4ºPODER. Percebemos que temos uma máquina de condenar, a polícia pede, o Promotor corrobora e o juiz acata. Diante dissa infâmia vêm o Defensor Público, o Dr. Advogado lutando contra esse sistema condenatório. A salvação são os recursos de ultima instância onde ainda acreditamos não estarem contaminados com essa sede de sangue como se apresenta o "juizo aquo".