por Fausto De Sanctis
Carta Forense - Existe uma grande dificuldade por parte da doutrina em conceituar o que é o Crime Organizado. Qual é a sua definição?
Fausto De Sanctis - A Lei sobre o Crime Organizado (n.º 9.034, de 03 de maio de 1995) apenas retratou os meios operacionais para a prevenção e repressão das ações praticadas por organizações ou associações criminosas ou quadrilha, levando à conclusão que haveria conceitos distintos. Entretanto, a Convenção ONU de Palermo sobre o Crime Organizado Transnacional, devidamente internalizada no Brasil desde 2003, define organização criminosa como sendo grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material. Não existe uma tipificação de "crime organizado", cuja omissão acaba sendo suprida, invariavelmente, pelo delito de quadrilha ou bando. Acredito que a Convenção acabou por facilitar a sua compreensão e tem viabilizado Cooperações Jurídicas internacionais em matéria penal apesar de o conceito de bando ou quadrilha ser menos amplo que o de organização criminosa. A exigência de dupla incriminação para as Cooperações tem sido flexibilizada.
CF - Qual a valoração que o tema está tendo pelos sistemas jurídicos no Mundo nestes últimos anos?
FDS - Uma das características criminológicas da organização criminosa constitui justamente a conexão estrutural ou funcional com o poder público e/ou com o poder político, com alto poder de intimidação, além da hierarquia estrutural, planejamento empresarial, claro objetivo de lucros, divisão territorial das atividades, conexões local, regional, nacional e/ou internacional com outras organizações etc. Hoje a discussão está centrada nos meios de combate, porquanto, de uma maneira geral, a conceituação acabou sendo superada com a edição da Convenção de Palermo.
CF - O Brasil tem uma boa legislação e mecanismos para o combate ao Crime Organizado, sobretudo, em comparação aos outros países?
FDS - Não. A legislação brasileira não adentra em pontos importantes e recomendados internacionalmente. Enquanto no país discute-se tempo de duração de interceptações telefônicas, no exterior, a questão está em se suprir o Estado de meios que respondam à altura do poder das organizações criminosas, claro, sem se descuidar dos direitos fundamentais. Por exemplo, debate-se qual o grau de participação de um agente infiltrado (qual a possibilidade da prática de modalidade delitiva), ações encobertas, ou seja, a utilização das chamadas Técnicas Especiais de Investigação, que são especiais porque a investigação do crime organizado requer a sua utilização dada suas especificidades e complexidades.
CF - Qual a relação do Crime Organizado com a Criminalidade Econômica? Eles são inerentes um ao outro?
FDS - O crime organizado não se restringe à Criminalidade Econômica. Mas, com a globalização, com as economias abertas e transfronteiriças, o delito se internacionalizou e, com ele, a "legitimação" do produto do delito. Uma das características criminológicas essenciais na lavagem de dinheiro constitui a ligação necessária com o crime organizado, o que provoca notável diversidade, no plano empírico, das condutas que aí se podem cometer.
CF - No Brasil qual a importância do Tráfico de Drogas na formação destas organizações?
FDS - A partir do Tráfico de Drogas é que se pensou em asfixiar as organizações criminosas com o confisco dos bens dos traficantes. A Convenção ONU de Viena de 1988 foi a primeira a provocar o debate político-criminal sobre a necessidade de tipificar o crime de Lavagem de Dinheiro. Desde o final do século passado já se temia a falência da prevenção e repressão do Estado no combate ao tráfico, que se concretiza com poderosas organizações criminosas.
CF - Existe uma grande dificuldade em tipificar a condutas dos autores?
FDS - Com o retorno dos valores ao local de origem da prática delitiva, permite-se não apenas o financiamento da atividade ilícita como também investimentos diversos na economia, havendo uma mistura de valores lícitos com ilícitos sob diversas justificativas, inclusive de investimentos estrangeiros por empresas offshores desconhecidas. Tal fato, por si só, já demonstra a dificuldade de apuração do crime de Lavagem de Dinheiro tanto à materialidade quanto à autoria."
CF - Há uma parte da doutrina que faz severas críticas ao uso das cláusulas abertas, como por exemplo, alguns dispositivos da Lei nº. 7.492/86. Qual seu posicionamento sobre o assunto?
FDS - A utilização dos chamados crimes de perigo abstrato em que não se exige um resultado naturalístico no campo da criminalidade não é nova. Nestes delitos a relevância criminal já se denota com a simples prática da conduta, que é pelo legislador já considerada com grande potencial de produção de dano. A criminalidade econômica é refratária a uma valoração objetiva do desvalor do resultado, valendo aqui mencionar Klaus Tiedeman, para quem "o emprego não é novo; o Direito não pode impedir que se produza um resultado danoso, senão que se levem a cabo ações perigosas". Por outro lado, tipos abertos são práticas comuns pelo legislador, podendo ser citado o delito culposo e o estelionato, constituindo o que na doutrina se chama de tipos anormais. Nunca houve contestação ao legislador quando ele consagrou que sendo culposo o crime, sem qualquer descrição de conduta, pode o autor merecer reprimenda punitiva. No mesmo sentido, quando pontifica haver fraude dolosa quando utilizado "outro meio fraudulento" sem especificar este. Em Portugal, ao se tentar tipificar conduta de gestão irregular de instituição financeira, após uma exaustiva lista de conduta, fez-se consignar "qualquer outra conduta lesiva". Como se vê, não é tão simples, na variedade fática, poder o legislador contemplar todas as ações ou omissões que possam causar prejuízo grave a um número indeterminado de pessoas, notadamente nos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional.
CF - As atividades das organizações criminosas, sobretudo, as que estão imersas na criminalidade econômica exigem uma formação especial nas atividades de investigação. Hoje no Brasil isto é um problema?
FDS - A necessidade de especialização vale para todos os ramos do direito. A complexidade da ciência penal e as peculiaridades de certas vertentes obrigam os operadores um debruçar mais atento sob pena de não se chegar à exata dimensão dos problemas com risco de perda de efetividade do processo-penal. A especialização é recomendada pelo Grupo de Ação Financeira Internacional que cuida do combate à Lavagem de Dinheiro. Na França, por exemplo, criaram-se 8 jurisdições especializadas para o tratamento da criminalidade organizada, quando antes havia 180. Nos Estados Unidos existem focos de discussão também especiais, além de forças-tarefas para combater tipos graves.
CF - Nos últimos anos, sobretudo, com o advento da informática, como está evoluindo o combate à Lavagem de Dinheiro?
FDS - A internet é realmente um instrumento maravilhoso de troca de informações, de compras e de entretenimento. Existe no âmbito internacional estudos de "tipologias" ou práticas delitivas via internet que têm servido à Lavagem de Dinheiro. Constitui enorme desafio a prevenção e o combate de tal delito porquanto é possível, com nomes fictícios, manipular os dados de identificação e realizar grande movimentação financeira. Estuda-se formas de comunicação de operações suspeitas por sites especializados.
CF - Como hoje vem sendo aplicada na prática a Delação Premiada nestes casos?
FDS - A Delação Premiada ou Colaboração Premiada ainda é vista com reservas no país, mas tem sido aplicada de maneira bastante intensa em vários países. No Brasil, começou-se recentemente a utilização deste método de investigação que, diga-se, deve vir cercado com muita prudência e sigilo. Não se pode simplesmente acatar a palavra de um colaborador sem que ela venha complementada por outros elementos de prova. Por outro lado, a garantia do sigilo da pessoa do colaborador, não evidentemente da provas que forem produzidas a partir de sua palavra, é vital para a sua realização, cuja garantia é dever do Estado a partir da consciência do risco evidente que envolve tal colaboração. O sigilo, nesta hipótese, visa cumprir a obrigação dos Poderes em zelar pela vida do preso, com mais razão, obviamente, daquele que deseja colaborar. O sigilo nos Estados Unidos é praxe na investigação e somente é possível a revelação do caso se o Grand Jury não entender que isso atenta contra a continuidade das apurações ou das pessoas envolvidas.
CF - Qual a destinação dos bens apreendidos pela justiça?
FDS - A Justiça Federal não tem medido esforços para dar a melhor solução aos bens apreendidos. Eles têm sido encaminhados para entidades beneficentes, museus, entidades sociais, sempre com a obrigação de manutenção e restauração, o que vem ao encontro do próprio interesse do acusado. Por outro lado, bens apreendidos com sério risco de depreciação têm sido alienados e o dinheiro depositado em conta remunerada. Com isto evita-se dispêndio desnecessário de manutenção do bem, até porque não existem verba pública para tal finalidade e alocação de espaço suficiente e o acusado, se absolvido ao final do processo, ao invés de receber algo inócuo, será ressarcido pelo valor corrigido.
CF - Muito se fala na impunidade dos crimes de colarinho branco. Quais razões o senhor nos daria para este triste fato?
FDS - O investimento em atividades legítimas, até por um motivo tão pouco nobre como a necessidade de lavar os capitais ilicitamente obtidos é um elemento complicador porquanto se faz necessário bem separar o que é legal e o que não é. A par disso, o legislador brasileiro contemplou um processo penal moroso, com recursos anacrônicos e existe uma cultura no país de que o Estado ao agir assim o faz não como decorrência de um bem-estar geral, mas como inimigo do cidadão. Permite-se, com isto, toda sorte de manipulação processual de molde que sistematicamente os resultados são a inépcia da denúncia, a prescrição ou o reconhecimento de nulidade. Não se pode virar de costas à realidade, muito menos à lei. A necessidade ético-jurídica de buscar a verdade não pode ser esquecida. Qualquer interpretação exige hoje, assim, a conjugação de valores essenciais que não se limitam aos direitos individuais. Aliás, quanto a estes, não se pode deixar de considerar, na esteira da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1789, o direito à segurança como uma garantia vital. Devem-se reconhecer todos os direitos, com visão conciliadora e não minimalista de forma não restarem tolhidos valores institucionais, sob pena de deslegitimação dos poderes públicos. Em muitas organizações com finalidades lícitas, as infrações deixam por vezes de ser incidentais, tornando-se quase rotineiras. O pacto constitucional erige a moralidade e a eficiência como um dos pilares dos poderes e, aí, o Judiciário não pode deixar de cumprir sua parte.
Fonte: Jornal Carta Forense, segunda-feira, 4 de janeiro de 2010