O Direito brasileiro prevê em sua Constituição Federal (CF) e no Código de Processo Penal (CPP) a competência do Tribunal do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (homicídio doloso, instigação ou auxílio a suicídio, infanticídio e aborto), consumados ou tentados. Uma questão com a qual o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem se deparado frequentemente diz repeito à eventual incompatibilidade entre a soberania dos vereditos, conferida pela CF ao Tribunal do Júri, e a revisão criminal.
O instituto do Tribunal do Júri está presente no Direito brasileiro desde as suas primeiras Constituições. São assegurados ao Tribunal do Júri a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos vereditos e a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. A lei descreve como deve ser o rito do Júri, da essencial imparcialidade dos jurados até a sistemática da votação.
Já a revisão criminal, conforme o artigo 621 do CPP, é uma ação penal autônoma que permite a revisão de processos finalizados quando a sentença condenatória é contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos; ou se baseia em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos; ou ainda quando, depois da sentença, se descubram novas provas de inocência do acusado ou de circunstância que determine ou autorize diminuição especial da pena.
Ou seja, a revisão criminal busca a reparação de um erro que tenha prejudicado o réu em uma decisão judicial, como lembra o ministro Napoleão Maia Filho, para quem a revisão “só ocorre quando aquela decisão representa uma forma qualificada de injustiça, causando incômodo social, pelo caráter absurdo da decisão”. Para o ministro, “a revisão criminal é a sobrevalência da justiça sobre a técnica, da ética da decisão sobre a técnica da elaboração, e só ocorre em casos em que a infração à norma é clara e objetiva”.
Pelo seu caráter de preservação da honra daquele que fora condenado injustamente, a revisão criminal pode ser pedida a qualquer tempo, antes ou após a extinção da pena, não só pelo réu, como também por seus familiares, no caso de ter falecido. Ainda para o ministro Napoleão Maia Filho, tal previsão existe justamente porque a condenação “carrega uma mancha indelével, que atinge a honra daquela pessoa e de seus familiares”, sendo a possibilidade de revisão “um juízo moral, importante do ponto de vista da biografia das pessoas”.
Então, como tem sido o entendimento do STJ quando são julgados, numa mesma ação, esses dois institutos? Seriam eles incompatíveis ou capazes de serem aplicados de maneira harmoniosa?
No Recurso Especial (Resp) 1.172.278, que teve como relator o ministro Jorge Mussi, o acusado foi condenado pelo Tribunal do Júri a 13 anos de reclusão por homicídio qualificado, com sentença transitada em julgado. Após a retificação do depoimento de uma testemunha, foi apresentado pedido de revisão criminal pedindo a absolvição do acusado por ausência de provas e solicitando que o réu não fosse submetido a novo julgamento pelo Tribunal do Júri.
A Quinta Turma, com base na doutrina e na jurisprudência dominante, negou provimento ao recurso, ao entender por bem que a revisão criminal, para não ofender a soberania dos vereditos, deve devolver o feito ao Tribunal do Júri, “único competente para a análise de provas em caso de crimes dolosos contra a vida”, de acordo com o voto do relator.
Outro caso é o presente no Habeas Corpus (HC) 126.064, também da Quinta Turma, em que o relator foi o ministro Felix Fischer. A situação refere-se a um homicídio qualificado cometido em concurso de pessoas, em que um dos acusados, pai dos pacientes, foi absolvido das acusações, o que serviu de motivação para que os filhos, condenados por votação apertada (4 a 3), solicitassem a revisão criminal, alegando ofensa ao princípio da igualdade.
Nesse caso (concurso de pessoas), a Quinta Turma entendeu que a absolvição de um dos acusados pelo Tribunal do Júri não implica a dos demais, ainda que a imputação seja a mesma – dependendo das provas produzidas contra cada um dos acusados e desde que o veredito popular condenatório não se revele manifestamente contrário à prova dos autos.
Decisão contrária à prova
No HC 58.295, cuja relatoria coube ao ministro Hamilton Carvalhido, quando ainda integrava a Sexta Turma, foi negado habeas corpus a um condenado por homicídio qualificado. O paciente apresentou habeas corpus contra decisão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS) que, provendo recurso do Ministério Público (MP), considerou contrária à prova dos autos a absolvição do réu na primeira instância, determinando a realização de novo julgamento.
Na nova análise, o Tribunal do Júri o condenou a sete anos de reclusão. Os jurados têm a liberdade de acatar qualquer das versões apresentadas, mantida a sua decisão por respeito à soberania dos vereditos, mas é necessário que a versão escolhida encontre amparo nos autos; caso contrário, o julgamento pode ser anulado para que se realize outro, como previsto no inciso III do artigo 593 do CPP, o que se deu no caso. Isso pode ocorrer quando os jurados decidem arbitrariamente, divergindo de toda e qualquer evidência probatória.
A Sexta Turma do STJ entendeu que, oferecidas aos jurados vertentes alternativas da verdade dos fatos, fundadas pelo conjunto da prova, é inadmissível que o tribunal de Justiça desconstitua, em apelação ou revisão criminal, a opção do Tribunal do Júri – alegando que esta seria manifestamente contrária aos autos – e escolha tese contrária.
Por sua vez, o réu não pode simplesmente alegar a existência de vertentes alternativas da prova da verdade dos fatos para evitar que seja novamente submetido ao júri popular. É necessário que elas sejam demonstradas objetivamente nos autos, particularizando as provas que originaram a versão que permitiu a formação de convicção diferente dos jurados. Por isso, o habeas corpus foi denegado.
O HC 19.419, que teve como relator o ministro aposentado Jorge Scartezzini, da Quinta Turma, foi impetrado por um homem acusado de crime de tentativa de homicídio qualificado que havia sido condenado a nove anos e quatro meses de reclusão pelo Tribunal do Júri.
Após o trânsito em julgado da decisão, a defesa ingressou com ação de revisão criminal, alegando ter sido a decisão manifestamente contrária à prova dos autos, pedido que foi considerado procedente pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), que não absolveu o réu, mas excluiu da sua condenação uma causa de aumento de pena. No habeas corpus, o réu questionou o fato de o tribunal local ter reformado, no mérito, a decisão do júri, em vez de ter determinado a sua submissão a novo julgamento popular.
No entendimento da Quinta Turma, as decisões proferidas pelo Tribunal do Júri não podem ser alteradas, relativamente ao mérito, pela instância “ad quem”, podendo apenas ser cassadas, para que ocorra novo julgamento pelo Conselho de Sentença, dentro das hipóteses previstas no artigo 593 do CPP. Caso contrário, estaria sendo usurpada a competência do Tribunal do Júri.
Nesse caso específico, a decisão do Júri foi reformada, no mérito, mediante revisão criminal, a qual, diferentemente da apelação (que possui natureza recursal), é uma ação que é ajuizada após o trânsito em julgado daquela a qual se refere. O reconhecimento, pelo tribunal de origem, de que a decisão do Júri foi manifestamente contrária à prova dos autos, ainda que em revisão criminal, não confere àquela corte a competência constitucionalmente prevista do Tribunal do Júri. Portanto, o acórdão foi anulado e o réu foi mantido preso enquanto aguardava o novo julgamento pelo Tribunal do Júri.
No Resp 220.188, no qual também atuou como relator o ministro Hamilton Carvalhido, da Sexta Turma, o acusado, condenado a cinco anos de reclusão por homicídio triplamente qualificado, alegou que a decisão dos jurados contrariou, de forma manifesta, a prova dos autos, afirmando que nenhuma das testemunhas ouvidas o teria identificado como autor dos disparos que atingiram a vítima, solicitando, assim, que fosse anulada a decisão do Júri e que fosse determinada a realização de novo julgamento.
No entanto, o pedido do réu não foi aceito, já que várias testemunhas afirmaram tê-lo reconhecido. O entendimento da Turma foi de que não é qualquer divergência entre a decisão dos jurados e os elementos de convicção extraídos do processo que autoriza a cassação do julgamento, mas somente a decisão que não encontrar qualquer respaldo na prova dos autos é que poderá ser invalidada.
Vertentes alternativas
No julgamento do HC 16.046, cuja relatoria na Sexta Turma também coube ao ministro Hamilton Carvalhido, o acusado se insurgiu contra decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) que deu provimento a recurso do Ministério Público para submetê-lo a novo júri popular, sendo que ele havia sido absolvido no primeiro julgamento.
O acusado ingressou com o habeas corpus, alegando ofensa à soberania do Júri e afirmando existir correntes divergentes sobre a verdade dos fatos que permitiriam o acolhimento da tese sustentada pela defesa.
No STJ, tem-se consolidado o entendimento de que, oferecidas aos jurados vertentes alternativas da verdade dos fatos, fundados pelo conjunto da prova, mostra-se inadmissível que o Tribunal de Justiça, seja em apelação ou em revisão criminal, desconstitua a opção do Tribunal do Júri – porque manifestamente contrária à prova dos autos –, sufragando, para tanto, tese contrária.
No entanto, ao denegar a ordem, o ministro lembrou o entendimento de que não basta, para evitar que o réu seja submetido a novo julgamento pelo Tribunal do Júri, a simples alegação da existência de vertentes alternativas da verdade dos fatos. Exige-se que seja demonstrado de maneira objetiva nos autos qual o meio de prova que teria dado origem à versão que, se reconhecida, seria capaz de oferecer circunstâncias hábeis a formar convicção diversa nos jurados, o que não ocorreu no caso.
Também sob a relatoria do ministro Hamilton Carvalhido, foi julgado o HC 16.348, impetrado por um acusado pelo crime de tentativa de homicídio qualificado contra decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) que julgou improcedente o seu pedido de revisão criminal, mantendo a condenação de oito anos de reclusão.
O impetrante alegou que a qualificadora do motivo fútil que foi atribuída a ele não ficou configurada, e que teria desistido voluntariamente de realizar o crime, não caracterizando tentativa, e sim desistência voluntária. Alegou, ainda, excesso na dosimetria da pena. No entanto, os autos demonstraram que não havia como se retirar a qualificadora do motivo fútil, já que a motivação para o crime veio de mera concorrência comercial – no ramo de panificadoras – promovida pela vítima, e que o crime só não ocorreu por circunstâncias alheias à vontade do réu. O excesso na dosimetria da pena também não foi caracterizado, no entendimento da Sexta Turma, que denegou a ordem.
O Resp 35.943, julgado na Quinta Turma, foi impetrado pelo Ministério Público contra decisão do TJSP. O tribunal estadual decidiu reduzir para 15 anos a pena de réu condenado inicialmente a esse tempo de reclusão pelo crime de latrocínio [roubo seguido de morte], mas que, após recorrer, alegando incompetência do juízo inicial – que reclassificou o crime para homicídio –, teve a pena aumentada para 17 anos pelo Tribunal do Júri.
Nesse caso, entraram em conflito dois institutos: o da proibição da “reformatio in pejus”, ou seja, reforma da decisão em prejuízo do réu, e o da soberania dos vereditos. O Ministério Público, à época, alegou no recurso especial que a proibição da “reformatio in pejus” não se aplicaria nos casos do Tribunal do Júri, devido ao preceito constitucional que garante a soberania dos seus julgados.
O STJ entendeu que a decisão do tribunal de origem, embora invocando aquela proibição – inaplicável aos julgamentos do Júri –, retificou a pena dentro de limites permitidos pelo CPP, sem a mínima divergência com as respostas dos jurados, as quais permaneceram intactas depois da decisão. Houve apenas a retificação da decisão do juiz presidente, sem afrontar a soberania do Júri, o que é permitido quando há injustiça no tocante à aplicação da pena. A Quinta Turma, então, negou provimento ao recurso do Ministério Público paulista.
História
A prática da realização do Júri é mais antiga do que se imagina. De acordo a doutrina, o Júri, como se conhece hoje, teve origem nos “judices jurati” dos romanos, órgãos julgadores compostos de cidadãos romanos; nos “dikastas” gregos, onde os cidadãos de Atenas julgavam os crimes pela sua convicção íntima; e ainda nos “centeni comites” dos germanos. Todos eram colegiados julgadores e se diferenciavam primordialmente pela forma de escolha dos participantes.
No entanto, foi durante o IV Concílio de Latrão, realizado em 1215 – o qual determinou a extinção das ordálias ou Juízos de Deus, responsáveis por conferir caráter teocrático aos julgados, em que geralmente o acusado era submetido a alguma provação para demonstrar sua inocência –, que o Júri ganhou a força dos tempos modernos. Após a proibição dos Juízos de Deus, as provações foram substituídas por reuniões de um conselho de jurados. Ainda naquele ano, a Magna Carta inglesa previu que, para prender, exilar ou retirar bens de qualquer homem livre, era necessário que ele fosse julgado por seus pares.
Processos: Resp 1172278, HC 126064, HC 58295, HC 19419, Resp 220188, HC 16046, HC 16348, Resp 35943
Fonte: STJ
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