sábado, 9 de maio de 2009

A palavra da vítima tem força probatória. Porém, analisar com cautela é imprescindível.


Em crimes contra os costumes basta a palavra da vítima para ensejar a condenação do réu. A máxima motivou o não acolhimento da Apelação nº 69433/2008 pela Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Mato Grosso ao acusado de abusar de uma criança no município de Brasnorte. O acusado impetrou recurso contra sentença proferida pelo Juízo da Comarca de Brasnorte (580 km de Cuiabá), cuja pena atingiu seis anos de reclusão em regime fechado sob acusação de atentado violento ao pudor com presunção de violência (artigo 214 concomitante com art. 224, alínea “a”, do Código Penal).
Aduziu o impetrante que não houve provas e que apenas palavra da criança não serviria para a condenação. Contudo, se mantida sentença, pediu que fosse substituída por restritiva de direito. A criança de 11 anos de idade prestava serviços de limpeza na casa do acusado, sendo que em determinado momento este começou a lhe presentear com roupas, brincos, óculos e até uma bicicleta usada. A vítima confirmou o fato a agentes do Conselho Tutelar da cidade e posteriormente, em Juízo. Contou que o apelante a acariciava nas partes íntimas, abraçava e tentava beijá-la de forma inconveniente, além de dizer que se casaria com a mesma quando esta crescesse.
O relator do recurso, desembargador Manoel Ornellas de Almeida, concluiu pela culpabilidade do réu, já que em crimes desta natureza basta a palavra da vítima, que foi reforçada por vários testemunhos, inclusive o de uma pessoa que disse ter ouvido do acusado que estava “amansando a vítima”. Com relação à pretensão alternativa de pena, esta também não prosperou, pois a aplicação foi da pena mínima, sendo que o artigo 44, inciso I, do Código Penal, em síntese explica que há substituição desde que a pena privativa de liberdade não seja superior a quatro anos e o crime não tenha sido cometido com violência ou grave ameaça. O magistrado destacou que quando a vítima é menor de 14 anos, presume-se violência (artigo 224, alínea “a”, do CP).
Os desembargadores Clarice Claudino da Silva (revisora) e Gérson Ferreira Paes (vogal) compartilham da mesma opinião. Apelação nº 69433/2008
Fonte: TJMT


Da ficção para a realidade
A decisão do TJ-MT levou-me a refletir sobre o peso que tem a palavra da vítima nos crimes contra os costumes. O relato dos fatos proferidos pela vítima deve ser analisado em conjunto com outras provas, se possível obtidas em tempo hábil, ensejando a constatação indubitável da materialidade delitiva.
Essa semana, os alunos da Faculdade Dois de Julho tiveram a oportunidade de ver o filme “Acusação”, apresentado pelo professor Tarsis Barreto Oliveira, mestre em Direito Penal, que leciona exemplarmente a disciplina nessa instituição.
Na década de 1980, nos EUA, membros de uma família proprietária de uma escola infantil, são acusados de abuso contra uma criança. Além da justiça que joga pesado contra os McMartin, eles sofrem a fúria histérica de sua comunidade. Apoiada nas supostas provas levantadas por uma falsa psicóloga contra os que trabalhavam naquela escola, a promotora manda alguns para cadeia. Inconformado, um advogado vê que se trata de um caso de histeria coletiva insuflado pela imprensa, e, uma década depois, consegue inocentar todos os acusados, mas vidas já tinham sido arruinadas.
Essa história contada no filme “Acusação” (produção de Oliver Stone e direção de Mick Jackon) virou realidade em 1994, na Escola Base, localizada no bairro da Aclimação, em São Paulo.
Tudo começou quando “duas mães de alunos dessa escola queixaram-se na delegacia do bairro do Cambuci de que seus filhos de quatro e cinco anos estavam sendo molestados sexualmente na escola, e talvez, levados numa Kombi para orgias num motel, onde seriam fotografados e filmados”. O delegado “x”, não só acolheu a denúncia como alardeou junto à imprensa antecipando uma condenação dos donos da Escola Base, que só no final do inquérito, dez anos depois – nova coincidência com o caso do filme - foram declarados inocentes.
Tanto na ficção como na realidade, os donos destas escolas sofreram linchamento moral: tiveram que fechar as escolas, os funcionários perderam os empregos, sofreram grave estresse e foram acometidos de doenças como a depressão, fobias, patologias do coração; também receberam inúmeras ameaças por telefonemas anônimos, e isolaram-se da comunidade.
A mídia, que espetacularizou a falsa denúncia e, sem nenhuma prova, lançou manchetes reproduzidas como se fosse uma onda espalhada pelo país, terminou estigmatizando os acusados de “monstros da escola”, “escola de horrores”, que a “Kombi era motel na escolinha do sexo”, etc. Um comentarista do extinto programa televisivo Aqui Agora, do SBT, chegou a pedir a pena de morte aos acusados.
Auto posicionada do lado do “bem” e justiça, a imprensa fechou olhos para o linchamento dos acusados, e, mesmo depois de ficar comprovada a inocência dos acusados não veio a público fazer autocrítica e confessar seu erro.
O mesmo acontece na política: comprovada a inocência, não se faz autocrítica da injustiça cometida contra inocentes, uns talvez por vergonha, culpa e medo, outros porque teimam em sustentar uma ‘moral cínica’. O delegado do caso da Escola Base poderia ter sido conscientizado ao ver o filme “Acusação”; poderia ter se informado sobre os fenômenos psíquicos das “falsas lembranças” produzidas por crianças em conflito, da “histeria coletiva”, do “transe grupal”, ou poderia tomar outra atitude mais racional – mais razoável – que o pudesse levá-lo ao discernimento sobre a denúncia mentirosa sobre os responsáveis pela Escola, mas preferiu tomar como única “prova” o depoimento vago e fantasioso das crianças e das mães. “Ciente da fragilidade das provas que tinha em mãos, [o delegado] agiu com culpa, nas modalidades de imprudência e imperícia”, disse o juiz Paulo Ribeiro na sentença (JB, 11/12/2004).
Falta de prudência e imperícia é comum acontecer em situações de delação ou de denúncia. A massa ou turba manobrada pela notícia espetacularizada geralmente responde com impulsos irracionais e gritos de “pega ladrão”, “joga pedra na Geni”, “mata”, “esfola”, etc. Nos momento de “onda histérica e coletiva”, de “transe grupal”, há que ter alguns céticos de plantão para sustentar um mínimo de dúvida, serenidade, razoabilidade e disposição para demonstrar a verdade. Todo investigador – policial, político de CPI ou cientista – exerce o seu ofício dignamente quando o faz com razoabilidade, prudência e serenidade.
Conforme alerta Chauí “Na presente circunstância brasileira, a impressão geral deixada pela mídia é da mescla de espetáculo e terror, tornando mais difícil do que já era manifestar idéias e opiniões nela e por meio dela” e, por isso mesmo, induz as pessoas a construírem opiniões levianas em vez de não permitir uma atitude de reflexão e análise serena diante do grave momento (Carta Aberta aos Alunos, Folha de S. Paulo). Todos têm lá suas 'opiniões' (doxa) certas ou erradas, disto ou daquilo, mas poucos se esforçam ou tem o compromisso de buscar o 'conhecimento' (episteme). Raros são os que hoje em dia seguem uma ética da sabedoria.
Embora os acusados da Escola Base, recentemente, ganhassem os processos junto à justiça (inclusive contra o Estado), as indenizações obtidas por danos psicológicos, morais e materiais não conseguirão reverter o que eles perderam de saúde, de dignidade, de imagem pessoal e profissional limpa perante a sociedade. Não conseguirão reaproximar casais, pais e filhos e amigos, todos afastados pela contaminação do veneno da delação e da acusação vazia.
O caso da Escola Base passou a ser referência obrigatória de análise e discussão nos cursos sobre Ética do Jornalismo e de Direito, especialmente quando tratam dos temas: calúnia, difamação, injúria, danos morais etc. Seminários e congressos discutem esse caso alertando para a necessária prudência, serenidade e responsabilidade dos profissionais envolvidos em ondas de denúncia e delação. Também a chamada “histeria coletiva”, “transe coletivo”, e as “falsas lembranças” são assuntos pouco estudados nos cursos de Psicologia, Psicopatologia, Psiquiatria, Estudos Sociais, etc. Vale a pena consultar o livro de Alex Ribeiro “O Caso Escola Base - Os Abusos da Imprensa”, publicado pela Editora Ática, em 1995.
Fonte: Revista Espaço Acadêmico – Nº 54 – Novembro/2005. Delação e escola: o caso da Escola Base.

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