terça-feira, 19 de maio de 2009

Penas alternativas viram fonte de recursos


Juízes do interior têm trocado a prestação de serviços por penas pecuniárias em benefícios dos próprios fóruns

por Letícia Lins
Previstas no Código Penal, mas ainda carecendo de regulamentação por parte do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) ou dos tribunais superiores, as penas alternativas geram distorções que não levam à reeducação do réu preconizada pela lei. A denúncia é do presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Mozart Valadares.
Entre os abusos, cita as prestações pecuniárias, em que os apenados são obrigados a comprar material de expediente para os fóruns, sobretudo em cidades mais pobres no interior.
- Realmente, já aconteceu, entre 2000 e 2001, quando apliquei penas que revertiam para a compra de materiais, como papel, cartuchos, tinta, do fórum e de outras instituições - confirma Maria Eliane Cabral, juíza do município de Serra Talhada, a 418 quilômetros de Recife.
"Fiz, faço e farei. Não havia material para Justiça"
Segundo ela, o assunto foi discutido num encontro de juízes e desembargadores no município sertanejo de Salgueiro: - Aleguei dificuldades e disse: fiz, faço e farei. Não havia material para a Justiça funcionar.
A prática não chega a ser vetada no Código Penal. Não é ilegal. Mas Mozart a questiona: - Como juiz, não posso aplicar uma pena e ser o beneficiário. Não se pode admitir que a Justiça necessite de alguém que cometeu um delito para que possa funcionar. Pode não existir impedimento legal para que isso aconteça, mas do ponto de vista ético é muito grave.
Na cidade de Bonito, região do Agreste a 137 quilômetros de Recife, o juiz Severino Coutinho da Silva diz que alguns apenados recebem penas pecuniárias quando têm maior poder aquisitivo.
Os recursos, afirma, não são revertidos para a Justiça, mas para a comunidade, que está ganhando uma escola de alfabetização para adultos. Ele confirma, porém, que alguns prestam serviços no próprio fórum: - Atuam fazendo capinação, pintura do prédio, atendimento ao público. Há os que colaboram na burocracia, mas não manuseiam os processos.
Severino enfatiza que, embora não estabeleça penas pecuniárias em benefício da comarca, nada impede que ele o faça. Para o presidente do Tribunal de Justiça de Pernambuco, Jones Figueiredo, o tema é polêmico: - O CNJ está tentando uniformizar os procedimentos para aplicação de penas alternativas.
Antes havia a cultura de condenar acusados a pagar cestas básicas, mas agora a prioridade é para prestação de serviços comunitários.Pelo menos é o que recomendamos. Mas é claro que não há sentido lógico nem ético aplicar pena pecuniária em favor da própria instituição.
Juiz mandou réu ir à missa, ler a Bíblia e lavar a igreja
Em Pernambuco já houve casos que viraram chacota. Pioneiro no país no uso das penas alternativas, o então juiz da 2ª Vara de Delitos Contra o Patrimônio, Caubi Arraes, ficou famoso ao obrigar um réu a assistir diariamente à missa, rezar, ler o Evangelho e lavar a igreja.
Hoje na 9ª Vara Criminal, o juiz não utiliza mais penas alternativas. Elas são indicadas para crimes de menor potencial ofensivo. Aplicam-se a infrações como pequenos furtos, apropriação indébita, estelionato, acidentes de trânsito, desacato, lesões corporais leves, ou delitos que rendam condenações de até quatro anos, desde que não haja violência ou grave ameaça.
Quando isso ocorre, Caubi envia o réu à Vepa (Vara de Execução das Penas Alternativas), criada em 2001 e que funciona nos 14 municípios da região metropolitana. Ali, cerca de 3 mil pessoas acertam as contas com a Justiça sem ficar atrás das grades. Segundo os folhetos da Vepa, "achar que a cadeia é o lugar mais indicado para o pequeno infrator é uma pena".
Ex-réu descobre o Direito ao trabalhar na Justiça:
RECIFE. Condenado a três anos e quatro meses por estelionato, quando era militar da Aeronáutica, o ex-condutor de trem Eric Marçal Garcia, 29 anos, descobriu sua vocação ao cumprir pena prestando serviço na parte administrativa da Vara de Execução de Penas Alternativas do Recife (Vepa). Apaixonouse pelas leis. Fez vestibular de Direito e cursa o quinto período. Quer ser promotor ou advogado. Está com meio caminho andado: é funcionário concursado da Justiça estadual, aprovado em concurso onde disputou 200 vagas com 44 mil pessoas. Hoje, trabalha na Vepa, por solicitação do juiz Flávio Augusto Fontes de Lima, titular da Vara.
A Vepa se destaca por iniciativas pioneiras no país. O índice de reincidência de 2,9% chamou a atenção do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro), que incluiu Pernambuco em pesquisa patrocinada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, com o objetivo de estruturar o sistema penal alternativo.
O estudo foi realizado ainda em São Paulo, Minas e Distrito Federal. Das 3 mil pessoas que cumprem penas alternativas na Vepa, 30 prestam serviços à Justiça. Mas o juiz Lima não vê problema nem acha que a Justiça precise dos réus para funcionar: - Aqueles que trabalham na Justiça são um ônus. Precisamos de funcionários para monitorá-los. Mas é terapia ocupacional. Tivemos um especialista em telecomunicações que instalou uma rede telefônica no fórum. É dependência? É uma medida socioeducativa. Temos envolvidos com drogas, que colocamos no Corpo de Bombeiros. Aprendem a ter disciplina.
O juiz informa que tem convênio com mais de mil entidades da região metropolitana, inclusive 13 prefeituras, para prestação de serviços comunitários. Alguns arranjaram emprego depois de cumprida a pena.
A Vepa adotou medidas inéditas no país: remissão por estudo e nada consta. O réu tem a pena reduzida em uma hora por cada cinco dias de frequência escolar. Também tem direito a um nada consta em certidões de antecedentes criminais, observandose algumas exigências. As duas medidas, que não constam nos códigos, foram tomadas por portaria.
Fonte: O Globo

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