Não há dúvida de que, na questão da titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, ou na regularização das terras ocupadas por descendentes de escravos, ou na titulação ou regularização das terras de quilombolas reconhecidos pela Fundação Palmares por própria autodeclaração, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidirá que é constitucional o decreto que regula a matéria.
E não pode ser diferente. O fundamento que o STF adotará, salvo melhor juízo, será o mesmo usado para decidir que é constitucional o decreto que cuida da demarcação de terras indígenas, ou seja, que a norma assegure a garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa. Essa garantia aparece no decreto quilombola nos seguintes termos: "Todos os interessados terão o prazo de 90 dias, após a publicação e notificações (...), para oferecer contestações..." Assim, a titulação de terras de quilombolas não abarca inconstitucionalidade da norma.
O decreto quilombola é a norma reguladora dos atos que ensejam a titulação e a regularização de terras atualmente ocupadas por descendentes de escravos. E o processo quilombola é o meio pelo qual a administração pública realiza os próprios atos que fazem da comunidade de descendentes de escravos uma proprietária de terras. Denota-se, assim, que é a administração pública que detém o poder de decidir se a terra é ou não quilombola.
Reforça esse entendimento o fato de que a administração pública é quem outorga o título de propriedade, de modo coletivo e pró-indiviso em nome da comunidade quilombola. O ente público "fabrica" o proprietário. Conclui-se que as terras quilombolas só podem incidir em terras públicas, de domínio do município, do Estado, do Distrito Federal ou da União. Absolutamente lógico.
Decerto, senão, o que justifica o fato de a titulação e a regularização das terras quilombolas estarem a cargo da administração pública, se a Constituição garante que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito", que "é garantido o direito de propriedade", ou que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada" e que "ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal"?
A comprovação do que se afirma vem corroborada pelo texto do artigo 12 do decreto quilombola, redigido nos seguintes termos: "Em sendo constatado que as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos incidem sobre terras de propriedade dos Estados, do Distrito Federal ou dos municípios, o Incra encaminhará os autos para os entes responsáveis pela titulação." Isso mostra por que cabe ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) o dever-poder para iniciar o processo administrativo quilombola, de ofício ou por requerimento de qualquer interessado. Ademais, a interpretação do artigo leva a concluir que, se as terras de domínio da União é que são habitadas e ocupadas por quilombolas, a expedição do título de propriedade em nome da respectiva comunidade é dever-poder do Incra. E é aqui que a administração pública usa do decreto e do processo quilombola para atentar contra os princípios da legalidade e da moralidade que a regem.
É a administração pública que reconhece que o cidadão de raça negra é descendente de quilombola, mediante autodefinição. É ela que admite que os efeitos do autorreconhecimento quilombola retroajam para declarar a ocupação quilombola em terras que são habitadas e exploradas por particulares, que cumprem a função social e que são comprovadamente terras particulares. Isso vem ocorrendo desde 5/10/1988, data da promulgação da Constituição.
A administração pública declara que as terras de posse e de domínio do particular são quilombolas mediante mera alegação unilateral da existência de suposta ocupação escrava pretérita, remota, imemorial. É quem instrui de ofício o processo quilombola contra terras de posse presente e de domínio exclusivo do particular, ou por mero requerimento de qualquer descendente de escravo autorreconhecido. É a administração pública que age como juiz da própria causa por instruir o processo quilombola; é quem declara a ocupação quilombola, quem julga a defesa apresentada pelo particular e quem analisa e rejeita a autenticidade e a legitimidade do título de propriedade do particular. E sempre indefere a defesa apresentada pelo particular. Enfim, a administração pública pratica desvio de finalidade, uma vez que utiliza o decreto e o processo quilombola e por meio deles transforma terras de posse e de domínio particular em terras quilombolas.
Por outro lado, não há no ordenamento jurídico vigente nem na jurisprudência dos tribunais do País qualquer preceito ou precedente que garanta que a administração pública pode transformar terras particulares em terras quilombolas. Ou que a administração pública possa ser parte interessada e juiz ao mesmo tempo. Ou que a lei retroaja em prejuízo do direito de propriedade, do devido processo legal, do direito adquirido, do ato jurídico perfeito, da coisa julgada e do controle do poder jurisdicional. Ou que as terras quilombolas sejam identificadas pela mera alegação da existência da ocupação escrava pretérita, remota, imemorial.
Essas considerações, todas de ordem pública e de interesse iminentemente público, revelam que a regularização ou a titulação de terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias vem ocorrendo no País compreendendo terras particulares, por força do desvio de finalidade empregado na aplicação do decreto e do processo quilombola, assim como na má-fé de agentes públicos. Daí por que o "Deus nos acuda"!
A ilegalidade e a imoralidade por desvio de finalidade que a administração pública vem praticando na questão da titulação quilombola no País é que deveriam ser alvo na Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) do DEM para análise e julgamento da Suprema Corte. Mas não o foram. Só resta esperar o veredicto!
Fonte: Cícero Alves da Costa - O Estado de S.Paulo
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