domingo, 16 de janeiro de 2011

Conceitos vazios sobre o público e o privado


por Mario Vargas Llosa

Desde que comecei a ler seus livros e artigos, coisa já de uns 30 anos atrás, sinto em relação a Fernando Savater algo que não me acontece com nenhum outro dos meus escritores preferidos: quase nunca discordo de seus julgamentos e críticas.

Em geral, as razões que ele apresenta me convencem de imediato, ainda que para isso deva retificar radicalmente aquilo em que, até agora, eu acreditava.

Quer ele fale a respeito de política, de literatura, de ética e até de cavalos (sobre os quais não sei nada, salvo que nunca acertei uma única aposta nas raras vezes em que pisei em um hipódromo), Savater pareceu-me sempre um modelo de intelectual comprometido, ao mesmo tempo um homem de princípios e um pragmático, um desses raros pensadores contemporâneos capazes de enxergar sempre claramente nos intricados meandros deste século 21 e de orientar os que se extraviaram a encontrar o caminho perdido.

Tudo isso vem a propósito de um artigo de sua autoria sobre o WikiLeaks e Julian Assange, fundador do site, que acabo de ler na revista Tiempo (edição de 23 de dezembro de 2010 a 6 de janeiro de 2011). Peço encarecidamente aos que comemoraram a divulgação de milhares de documentos confidenciais do Departamento de Estado dos EUA como uma proeza da liberdade, que leiam este artigo que esbanja inteligência, valentia e sensatez. Se não os fizer mudar de opinião, certamente os levará, pelo menos, a refletir e a se perguntar se seu entusiasmo não terá sido algo precipitado.

Savater comprova que nesta vasta coleção de materiais vazados não há praticamente revelações importantes, que as informações e opiniões confidenciais vindas à luz já eram sabidas ou presumíveis por qualquer observador da atualidade política mais ou menos informado, e o que predomina nelas é principalmente o mexerico destinado a saciar esta frivolidade que, sob o respeitável rótulo da transparência, é na verdade o entronizado "direito de todos a ser informados de tudo, para que não haja segredos e reservas que possam contrariar a curiosidade de alguém - seja quem for que tiver de cair, e o que for que percamos pelo caminho".

Este suposto "direito", acrescenta, é "parte da atual imbecilização social". Concordo integralmente com esta afirmação.

A revolução audiovisual de nosso tempo violentou as barreiras que a censura opunha à livre informação e à dissidência crítica. Graças a isso, os regimes autoritários têm muito menos possibilidade do que no passado de manter seus povos na ignorância e de manipular a opinião pública.

Evidentemente, trata-se de um grande progresso para a cultura da liberdade e é preciso se beneficiar disso. Mas daí a concluir que a prodigiosa transformação das comunicações representada pela internet nos autoriza a saber tudo e a divulgar tudo o que acontece debaixo do sol (ou debaixo da lua), fazendo desaparecer de uma vez por todas a linha de demarcação entre o público e o privado, há um abismo que, se abolido, poderá significar, não uma façanha libertária, mas pura e simplesmente um liberticídio que, além de solapar as bases da democracia, infligirá um rude golpe à civilização.

Libertinagem informativa. Nenhuma democracia poderá funcionar se desaparecer a confidencialidade das comunicações entre funcionários e autoridades, nenhuma forma de política nos campos da diplomacia, da defesa, da segurança, da ordem pública e até da economia terá consistência se os processos que estas políticas determinam forem expostos totalmente à luz em todas as suas instâncias.

O resultado de semelhante exibicionismo informativo seria a paralisia das instituições e tornaria mais fácil para as organizações antidemocráticas a criação de obstáculos e a anulação de todas as iniciativas dotadas de seus propósitos autoritários. A libertinagem informativa não tem nada a ver com a liberdade de expressão e, ao contrário, é seu oposto.

Esta libertinagem é possível somente nas sociedades abertas, não nas que são submetidas a um controle policialesco vertical que sanciona com ferocidade toda tentativa de violentar a censura. Não por acaso os 250 mil documentos confidenciais obtidos pelo WikiLeaks são o fruto da ação de pessoas que traíram os Estados Unidos e não da Rússia ou da China.

Embora as intenções de Julian Assange respondam, como foi dito, ao sonho utópico e anarquista da transparência total, suas operações com o propósito de pôr fim ao "segredo" poderão conduzir, nas sociedades abertas, ao surgimento de correntes de opinião que, com o argumento de defender a indispensável confidencialidade no seio dos Estados, proponham freios e limites a um dos direitos mais importantes da vida democrática: o da livre expressão e da crítica.

Em uma sociedade livre, a ação dos governos é fiscalizada pelo Congresso, pelo Poder Judiciário, a imprensa independente e de oposição, pelos partidos políticos, instituições que evidentemente têm todo o direito do mundo de denunciar as fraudes e as mentiras aos quais às vezes recorrem certas autoridades para encobrir ações e trâmites ilegais. Mas o que o WikiLeaks fez não é nada disso. Ele destruiu brutalmente a privacidade das comunicações nas quais os diplomatas e agregados informam seus superiores sobre as intimidades políticas, econômicas, culturais e sociais dos países onde servem.

Grande parte deste material é constituída por dados e comentários cuja divulgação, embora não tenha maior transcendência, cria situações enormemente delicadas para estas atividades e provoca suscetibilidades, rancores e ressentimentos que servem apenas para prejudicar as relações entre países aliados e desprestigiar seus governos.

Não se trata, pois, de combater uma "mentira", mas, de fato, de satisfazer a curiosidade mórbida e malsã da civilização do espetáculo, que é a do nosso tempo, na qual o jornalismo (e a cultura em geral) parece se desenvolver seguindo o desígnio único de entreter.

Julian Assange, mais do que um grande lutador libertário, é um animador de sucesso, uma espécie de Oprah Winfrey da informação.

Se não existisse, teria sido criado mais cedo ou mais tarde pelo nosso tempo, porque esse personagem é o símbolo emblemático de uma cultura em que o valor supremo da informação hoje é o de divertir um público frívolo e superficial, ávido de escândalos que vasculham a intimidade dos famosos, mostram suas fraquezas e envolvimentos e os convertem em bufões da grande farsa que é a vida pública.

Embora, talvez, falar de "vida pública" seja inexato, pois para que ela existisse deveria existir também sua contrapartida, a "vida privada" é algo que praticamente foi desaparecendo até se transformar em um conceito vazio e obsoleto.

O que é o privado nos nossos dias? Uma das consequências involuntárias da revolução informática é a volatilização das fronteiras que o separavam do público, e ter confundido ambos em uma representação na qual todos somos ao mesmo tempo espectadores e atores.

Nela, reciprocamente queremos brilhar exibindo nossa vida privada e nos divertimos observando a alheia em um strip-tease generalizado no qual nada está a salvo da curiosidade mórbida de um público depravado pela frivolidade.

O desaparecimento do privado, o fato de ninguém respeitar a intimidade alheia, de esta se ter tornado um espetáculo que excita o interesse geral e de que exista uma indústria informativa que alimenta sem trégua e sem limites este voyeurismo universal, é uma manifestação de barbárie.

Pois com o desaparecimento do domínio do privado muitas das melhores criações e funções do humano se deterioram e se aviltam, a começar por tudo aquilo que está subordinado ao cuidado com certas formas, como o erotismo, o amor, a amizade, o pudor, as maneiras, a criação artística, o sagrado e o moral.

Que remédio, se os governos escolhidos em eleições legítimas forem derrubados por revoluções que querem trazer o paraíso para a terra (embora frequentemente tragam antes o inferno)?

Que desgraça, se forem deflagrados conflitos e até guerras sanguinárias entre países que defendem religiões, ideologias ou ambições incompatíveis, que desgraça!

Mas que tais tragédias possam chegar a ocorrer porque nossos privilegiados contemporâneos se aborrecem e precisam de emoções fortes, e um internauta vidente como Julian Assange lhes oferece o que pedem, não, não é possível nem aceitável.

Fonte: Estadão

Nenhum comentário: