por Marina Ito
Um caso que, à primeira vista, parecia simples deu ensejo a uma espécie de manual de instrução para procedimentos policiais com o respeito aos direitos fundamentais dos investigados. Ao absolver duas inglesas acusadas de estelionato, a maioria dos desembargadores da 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro acabou por traçar os limites da atuação do Estado.
O desembargador Geraldo Prado, relator da apelação que absolveu Shanti Simone Andrews e Rebecca Claire Turner, deixou claro em seu voto que o modo como se deu a apuração das suspeitas não respeitou as garantias fundamentais das duas. Prado disse que, ao desconfiar da atitude das turistas, cabia à autoridade “diligenciar no sentido de obter o necessário mandado de busca e apreensão”.
Citando o voto do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, o desembargador afirmou que o conceito de casa, protegida pela Constituição, vai além do lugar onde a pessoa mora, incluindo “qualquer compartimento habitado, qualquer aposento ocupado de habitação coletiva e qualquer compartimento privado não aberto ao público onde alguém exerce profissão ou atividade”.
Formadas em Direito, Shanti e Rebecca foram à Delegacia de Atendimento ao Turista para registrar uma queixa. Elas preencherem um comunicado de furto que seria utilizado para a confecção do registro de ocorrência. Relataram que alguns objetos haviam sido furtados durante a viagem que fizeram entre Foz do Iguaçu e Rio.
A ânsia de dar uma lição nas turistas estrangeiras fez com que as autoridades se esquecessem da Constituição. Desconfiados das duas, os policiais telefonaram para o albergue onde elas estavam hospedadas e pediram que um funcionário conferisse objetos no quarto das turistas. Ele pôde observar pela fresta de uma gaveta dentro do quarto das hóspedes alguns objetos incluídos no comunicado como furtados. Com o consentimento das turistas e, acompanhados do funcionário do albergue, os policiais localizaram os objetos. As duas foram acusadas pelo Ministério Público de tentar aplicar o chamado “golpe do seguro”.
Geraldo Prado afirmou que o fato de ser funcionário do albergue não faz com que ele tenha autorização para entrar no quarto das hóspedes. O desembargador citou Ada Pellegrini Grinover, que diz ser “irrelevante indagar se o ilícito foi cometido por agente público ou por particulares, porque, em ambos os casos, a prova terá sido obtida com infringência aos princípios constitucionais que garantem os direitos da personalidade”.
O desembargador afirmou, ainda, que o funcionário entrou no quarto das inglesas com o objetivo de “proceder a diligência cuja atribuição constitucional é da polícia. Agiu, portanto, se é que assim é permitido, como uma espécie de 'longa manus' da autoridade policial.”
“Essa espécie de hospedagem, como se sabe, não possui sequer serviço de camareira, o que, de plano, afasta eventual alegação de que as rés consentiam com a limitação de sua intimidade por autorização contratual”, disse o desembargador. Além disso, afirmou, os contratos de serviços de hospedagem não permitem que um funcionário entre no aposento ocupado pelo contratante para fins diversos dos estabelecidos em suas obrigações contratuais.
“Diferente seria se uma camareira, por exemplo, quando entrasse no quarto do hóspede com o exclusivo objetivo de exercer suas atividades profissionais, encontrasse, sobre a cama – exposta portanto – uma determinada quantidade de droga, o que lhe permitiria comunicar o fato à polícia.”
O desembargador afastou, ainda, eventual invocação do flagrante delito para legitimar a atitude. Isso porque, explicou, não havia “notícia prévia do estado de flagrância”, já que o que ensejou a ida do funcionário ao quarto das hóspedes foi a suspeita de um dos policiais.
“O ingresso não pode decorrer de um estado de ânimo do agente estatal no exercício do poder de polícia. Ao revés, é necessário que fique demonstrada a fundada – e não simplesmente íntima – suspeita de que um crime esteja sendo praticado no interior da casa em que se pretende ingressar e que o ingresso tenha justamente o propósito de evitar que esse crime se consume”, disse.
Direito de saber
O desembargador também afirma em seu voto que os policiais, mesmo sendo informados pelo funcionário do albergue sobre os objetos que estavam na gaveta trancada das hóspedes, continuaram com o procedimento de fazer o registro de ocorrência de furto.
“Embora tenham passado de vítimas a indiciadas, as rés não foram cientificadas de seu direito ao silêncio (artigo 5.º, inciso LXIII, da Constituição da República) e ainda foram ludibriadas, pois prestaram declarações autoincriminatórias acreditando que eram encaradas, pelo policial, como lesadas”, entendeu o desembargador.
Para Prado, o consentimento das duas ao permitirem que os policiais fossem até o quarto delas no albergue não é válido. “A renúncia aos seus direitos constitucionais – sem dúvida possível em princípio – deu-se fora do exercício de suas liberdades individuais, o que igualmente torna a apreensão dos bens ilícita. E a liberdade, que pressupõe o conhecimento de todas as circunstâncias fáticas envolvidas e das possíveis consequências da opção que vier a ser feita, é essencial para a validade da renúncia ao direito de não produzir prova contra si”, disse.
O desembargador afirmou que é dever das autoridades policiais, no momento em que investiga os acusados, alertá-los de que eles têm direito ao silêncio. “A prova oral é expressa em afirmar que as acusadas não só não foram cientificadas de seus direitos constitucionais, como acreditaram que estavam colaborando não para a sua incriminação, mas para a solução do crime de que diziam ser vítimas”, disse.
Embora as inglesas tenham confessado em juízo que incluíram na lista de objetos furtados alguns que não haviam sido, tais provas colhidas durante a instrução do processo caíram por terra. Isso porque, segundo a Câmara, tudo o que foi apurado se deu com base no procedimento policial que levou autoridades a entrar no quarto das duas sem mandado judicial.
O voto do relator foi acompanhado pelo desembargador Sérgio Verani. Vencido, o desembargador Cairo Ítalo França David reformava a decisão de primeira instância para excluir a condenação pelos crimes de falsidade ideológica e comunicação falsa de crime, reduzir as penas a quatro meses de reclusão e três dias-multa, substituindo a pena privativa de liberdade por prestação pecuniária.
Em primeira instância, o juiz Flávio Itabaiana Nicolau, da 27ª Vara Criminal do Rio condenou as turistas a um ano e quatro meses de reclusão e um mês de detenção, substituídos por duas penas restritivas de direito, com prestação de serviços à comunidade.
O juiz entendeu, ainda, não ser cabível a prestação pecuniária. "Certamente daria à ré a sensação de estar comprando sua liberdade, ainda mais por ter uma situação econômica privilegiada (o que, vale repisar, é evidenciado por estar viajando pelo mundo há nove meses)", afirmou.
Shanti e Rebecca, representadas pelos advogados Renato Tonini e Sergio Pita, chegaram a ficar presas. A defesa recorreu ao TJ e o desembargador Sérgio Verani concedeu o HC sob o entendimento de que o fato de ser estrangeiro, por si só, não justifica manutenção da prisão. "Na hipótese de eventual condenação, a imposição da pena privativa de liberdade seria uma possibilidade remotíssima", disse à época.
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Fonte: Conjur
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