Como é a vida de detentos que conseguiram emprego em órgãos públicos ou empresas – e como isso pode reduzir a reincidência no crime
por Eliseu Barreira Junior
Marcos de Souza*, de 42 anos, trabalha desde abril de 2009 no Museu da Memória Institucional do Supremo Tribunal Federal (STF). Diariamente, das 11 às 19 horas, ele ajuda nas pesquisas, analisa obras e classifica documentos e objetos históricos. Condenado a 13 anos de prisão por envolvimento com tráfico de drogas, o pernambucano formado em filosofia perdeu a liberdade e o convívio com as duas filhas ao passar para o lado do crime. Agora, tenta recuperar a autoestima e o respeito dos familiares. “Essa oportunidade no Supremo é minha oficina de lapidação. Sempre aprendo algo novo e o mais importante: sou tratado como os demais funcionários.” Marcos cumpre a pena em regime aberto há três meses. Motivado pelo trabalho, ele pretende retomar os estudos e cursar história. Seu caso, longe de ser uma exceção, mostra como iniciativas de empresários e órgãos públicos podem ajudar na ressocialização de mais de 470 mil presos espalhados pelo Brasil.
Nos últimos dez anos, o número de detentos mais que dobrou no país. Em 2000, havia 232 mil pessoas detidas nas cadeias brasileiras. Em 2009, 473 mil. Mas só uma pequena parcela trabalha. Do total de condenados, 1,7% participa de programas de trabalho externo na iniciativa privada. A taxa cai para 0,5% no caso de órgãos públicos. Aumentar esses índices pode contribuir para resolver um grande problema do sistema carcerário brasileiro: a reincidência no crime. Ao menos sete em cada dez detentos que são soltos voltam para a prisão. Um estudo realizado em 2009 pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) concluiu que os índices de reincidência entre os presos que trabalhavam durante a pena foi de apenas 11,2%. Em São Paulo, números divulgados no final do ano passado pela Secretaria da Administração Penitenciária revelaram que 80% dos ex-detentos que conseguem trabalho deixam de reincidir no crime. Histórias de presos que conseguiram uma oportunidade e desistiram da vida que levavam antes da detenção mostram que uma segun-da chance pode dar resultados para conter a criminalidade no Brasil.
Tanto empresários quanto governos têm se empenhado na criação de programas que usem a mão de obra dos detentos. Ganha força a visão de que não basta criar oportunidades dentro dos muros dos presídios. É preciso oferecer emprego fora deles. “Assim como as empresas são valorizadas quando contratam um portador de deficiência, com o tempo elas serão valorizadas ao contratar um egresso”, diz José Pastore, professor aposentado da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo. O olhar desconfiado da sociedade para o ex-detento ainda é o principal entrave para que ele consiga uma colocação no mercado. “Lamentavelmente, subsiste a concepção de que os presidiários são indivíduos desajustados e perturbadores da ordem social”, afirma o jurista Dalmo Dallari. Estudos são raros, mas acredita-se que apenas 10% dos condenados sejam realmente perigosos para a sociedade.
Dois assaltos à mão armada resultaram numa sentença de 11 anos para o goiano Paulo da Silva. Hoje, aos 28 anos, ele é funcionário da Guia Fashion Confecções, uma das empresas terceirizadas responsáveis por embalar as roupas da marca Hering. Ao receber o benefício da semiliberdade no ano passado, a ficha suja de Paulo o atrapalhava nas entrevistas de emprego. Depois de várias tentativas fracassadas, um conhecido o indicou ao empresário Claudemir Gomes Dutra, dono da Guia Fashion. Por ter trabalhado durante um ano e meio na prisão embalando roupas da Hering, Paulo tinha a experiência necessária para assumir uma vaga na empresa de Claudemir. Foi contratado. Sua jornada começa às 7 da manhã e vai até as 5 da tarde, período em que embala uma média de 800 peças. Ele recebe um salário mínimo por mês e vale-transporte. “É um excelente funcionário e valoriza a oportunidade”, afirma Claudemir. Dos 48 funcionários da Guia Fashion, dois são detentos em regime semiaberto. “Não é porque a pessoa errou uma vez que não merece um voto de confiança. Se eu pudesse, contrataria outros 30 presidiários como o Paulo.” A visão do patrão se reflete no dia a dia da empresa. Paulo conta que nunca sofreu preconceito desde que começou a trabalhar. “Graças a Deus, sou considerado igual a todo mundo. Não me discriminam”, diz.
Uma experiência realizada nos Estados Unidos, onde há 2 milhões de pessoas presas (o que equivale a 25% de todos os detentos do mundo), mostra a importância do trabalho para diminuir a reincidência criminal. Lá, cerca de 700 mil presos são libertados anualmente – e 66% reincidem. Baseada em Nova York, a organização sem fins lucrativos Center for Employment Opportunities (CEO) já ajudou mais de 10 mil condenados a obter colocações estáveis em empresas e órgãos públicos na última década. O objetivo do programa é simples: preparar o preso recém-libertado ou em liberdade condicional para se inserir no mercado de trabalho. Isso inclui desde ensinar à pessoa a responder a perguntas relativas a sua condenação numa entrevista de emprego até prover um trabalho remunerado para que as habilidades exigidas pelos empregadores sejam desenvolvidas. Feito isso, o CEO passa a funcionar como uma espécie de agência que faz a ligação entre os treinados e o mercado. Uma pesquisa revelou que os beneficiados pelo programa têm 50% menos chances de voltar para a prisão. Por causa do sucesso, no ano passado o CEO foi semifinalista de um prêmio que a empresa controladora do jornal The New York Times concede a organizações não lucrativas. Para este ano, o centro pretende colocar 1.400 egressos de prisões no mercado de trabalho.
O estigma que costuma perseguir um presidiário no dia a dia é o tema da monografia do ex-policial Pedro dos Santos, de 43 anos, do Tocantins. Condenado a 24 anos de prisão por homicídio, ele trabalha há nove meses na Secretaria da Presidência do STF. E está prestes a se formar em Direito. Diariamente, ele cuida da correspondência enviada à corte de Justiça mais importante do país. Assim como Marcos, cuja história abriu esta reportagem, Pedro é um dos 30 atendidos por um programa de contratação de sentenciados em regime aberto, semiaberto e com suspensão condicional da pena implantado em 2008. “Estamos preocupados com a dupla dimensão do fenômeno da reinserção social de presos”, disse o ministro do STF Gilmar Mendes, em entrevista a ÉPOCA. “Ao mesmo tempo que respeitamos os direitos humanos do sentenciado, tratamos de um tema de segurança pública.” Para o preso, o projeto é a oportunidade de voltar à liberdade não como um pária, mas como um trabalhador: “Esse trabalho é um passo muito importante na minha vida. Hoje me sinto integrado socialmente. Daqui para a frente quero crescer como advogado”, diz Pedro. Apenados que trabalham no STF recebem salários que variam de R$ 550 (ensino fundamental completo) a R$ 650 (ensino médio completo), auxílio transporte e vale-alimentação. O contrato é feito por meio de uma parceria firmada entre o Supremo e a Fundação de Amparo ao Preso (Funap), responsável pela triagem dos detentos. Os principais motivos de condenação dos empregados são homicídio, roubo, furto, receptação, tráfico e latrocínio. “Quando criamos o projeto, confesso que tive um certo receio”, afirma Amarildo Oliveira, secretário de Recursos Humanos do STF. “Com o tempo percebi que não havia nada que contraindicasse a me-dida.”
O projeto do STF é resultado de uma série de medidas tomadas para fazer valer o direito à convivência social do condenado, solu-cionar o problema da superlotação das cadeias e reduzir os índices de criminalidade. Ele nasceu na esteira dos mutirões carcerários, criados em agosto de 2008 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para promover a revisão das detenções provisórias e definitivas no país. Até agora, cerca de 20 mil presos foram libertados em mutirões. Os condenados que já cumpriram suas penas são atendidos por outro programa criado pelo CNJ, o Começar de Novo.
Em março deste ano, o CNJ apresentou ao Congresso Nacional uma proposta de incentivo fiscal a empresas que contratarem presos e ex-detentos. Pode ser mais um passo na direção certa, mas o Brasil precisa percorrer um longo caminho para ressocializar seus con-denados. Ainda não há uma diretriz nacional que oriente as ações estaduais e nem mesmo um alinhamento dos diferentes agentes ligados à questão que caracterize o papel das atividades educacionais e laborativas nas penitenciárias do país. Por isso, vários programas implementados não se consolidam como política de Estado consistente e permanecem apenas como mais um entre vários projetos. “Ao longo da história da execução penal brasileira temos iniciativas louváveis que foram esquecidas em virtude da nossa cultura de descontinuidade administrativa para a política pública”, afirma Elionaldo Fernandes Julião, da Uerj. Ele pesquisou em sua tese de dou-torado a situação do sistema carcerário nacional. Em segundo lugar, inexistem informações oficiais detalhadas do perfil dos internos e dos índices de reincidência nos Estados. Para completar o quadro, a lei de execução penal brasileira está longe de funcionar na prática. “Precisamos de uma justiça criminal mais efetiva que respeite as regras básicas da legislação vigente”, diz o ministro Gilmar Mendes. “Nosso desafio é colocar em prática o que já está no papel”.
Fonte: Revista Época
por Eliseu Barreira Junior
Marcos de Souza*, de 42 anos, trabalha desde abril de 2009 no Museu da Memória Institucional do Supremo Tribunal Federal (STF). Diariamente, das 11 às 19 horas, ele ajuda nas pesquisas, analisa obras e classifica documentos e objetos históricos. Condenado a 13 anos de prisão por envolvimento com tráfico de drogas, o pernambucano formado em filosofia perdeu a liberdade e o convívio com as duas filhas ao passar para o lado do crime. Agora, tenta recuperar a autoestima e o respeito dos familiares. “Essa oportunidade no Supremo é minha oficina de lapidação. Sempre aprendo algo novo e o mais importante: sou tratado como os demais funcionários.” Marcos cumpre a pena em regime aberto há três meses. Motivado pelo trabalho, ele pretende retomar os estudos e cursar história. Seu caso, longe de ser uma exceção, mostra como iniciativas de empresários e órgãos públicos podem ajudar na ressocialização de mais de 470 mil presos espalhados pelo Brasil.
Nos últimos dez anos, o número de detentos mais que dobrou no país. Em 2000, havia 232 mil pessoas detidas nas cadeias brasileiras. Em 2009, 473 mil. Mas só uma pequena parcela trabalha. Do total de condenados, 1,7% participa de programas de trabalho externo na iniciativa privada. A taxa cai para 0,5% no caso de órgãos públicos. Aumentar esses índices pode contribuir para resolver um grande problema do sistema carcerário brasileiro: a reincidência no crime. Ao menos sete em cada dez detentos que são soltos voltam para a prisão. Um estudo realizado em 2009 pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) concluiu que os índices de reincidência entre os presos que trabalhavam durante a pena foi de apenas 11,2%. Em São Paulo, números divulgados no final do ano passado pela Secretaria da Administração Penitenciária revelaram que 80% dos ex-detentos que conseguem trabalho deixam de reincidir no crime. Histórias de presos que conseguiram uma oportunidade e desistiram da vida que levavam antes da detenção mostram que uma segun-da chance pode dar resultados para conter a criminalidade no Brasil.
Tanto empresários quanto governos têm se empenhado na criação de programas que usem a mão de obra dos detentos. Ganha força a visão de que não basta criar oportunidades dentro dos muros dos presídios. É preciso oferecer emprego fora deles. “Assim como as empresas são valorizadas quando contratam um portador de deficiência, com o tempo elas serão valorizadas ao contratar um egresso”, diz José Pastore, professor aposentado da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo. O olhar desconfiado da sociedade para o ex-detento ainda é o principal entrave para que ele consiga uma colocação no mercado. “Lamentavelmente, subsiste a concepção de que os presidiários são indivíduos desajustados e perturbadores da ordem social”, afirma o jurista Dalmo Dallari. Estudos são raros, mas acredita-se que apenas 10% dos condenados sejam realmente perigosos para a sociedade.
Dois assaltos à mão armada resultaram numa sentença de 11 anos para o goiano Paulo da Silva. Hoje, aos 28 anos, ele é funcionário da Guia Fashion Confecções, uma das empresas terceirizadas responsáveis por embalar as roupas da marca Hering. Ao receber o benefício da semiliberdade no ano passado, a ficha suja de Paulo o atrapalhava nas entrevistas de emprego. Depois de várias tentativas fracassadas, um conhecido o indicou ao empresário Claudemir Gomes Dutra, dono da Guia Fashion. Por ter trabalhado durante um ano e meio na prisão embalando roupas da Hering, Paulo tinha a experiência necessária para assumir uma vaga na empresa de Claudemir. Foi contratado. Sua jornada começa às 7 da manhã e vai até as 5 da tarde, período em que embala uma média de 800 peças. Ele recebe um salário mínimo por mês e vale-transporte. “É um excelente funcionário e valoriza a oportunidade”, afirma Claudemir. Dos 48 funcionários da Guia Fashion, dois são detentos em regime semiaberto. “Não é porque a pessoa errou uma vez que não merece um voto de confiança. Se eu pudesse, contrataria outros 30 presidiários como o Paulo.” A visão do patrão se reflete no dia a dia da empresa. Paulo conta que nunca sofreu preconceito desde que começou a trabalhar. “Graças a Deus, sou considerado igual a todo mundo. Não me discriminam”, diz.
Uma experiência realizada nos Estados Unidos, onde há 2 milhões de pessoas presas (o que equivale a 25% de todos os detentos do mundo), mostra a importância do trabalho para diminuir a reincidência criminal. Lá, cerca de 700 mil presos são libertados anualmente – e 66% reincidem. Baseada em Nova York, a organização sem fins lucrativos Center for Employment Opportunities (CEO) já ajudou mais de 10 mil condenados a obter colocações estáveis em empresas e órgãos públicos na última década. O objetivo do programa é simples: preparar o preso recém-libertado ou em liberdade condicional para se inserir no mercado de trabalho. Isso inclui desde ensinar à pessoa a responder a perguntas relativas a sua condenação numa entrevista de emprego até prover um trabalho remunerado para que as habilidades exigidas pelos empregadores sejam desenvolvidas. Feito isso, o CEO passa a funcionar como uma espécie de agência que faz a ligação entre os treinados e o mercado. Uma pesquisa revelou que os beneficiados pelo programa têm 50% menos chances de voltar para a prisão. Por causa do sucesso, no ano passado o CEO foi semifinalista de um prêmio que a empresa controladora do jornal The New York Times concede a organizações não lucrativas. Para este ano, o centro pretende colocar 1.400 egressos de prisões no mercado de trabalho.
O estigma que costuma perseguir um presidiário no dia a dia é o tema da monografia do ex-policial Pedro dos Santos, de 43 anos, do Tocantins. Condenado a 24 anos de prisão por homicídio, ele trabalha há nove meses na Secretaria da Presidência do STF. E está prestes a se formar em Direito. Diariamente, ele cuida da correspondência enviada à corte de Justiça mais importante do país. Assim como Marcos, cuja história abriu esta reportagem, Pedro é um dos 30 atendidos por um programa de contratação de sentenciados em regime aberto, semiaberto e com suspensão condicional da pena implantado em 2008. “Estamos preocupados com a dupla dimensão do fenômeno da reinserção social de presos”, disse o ministro do STF Gilmar Mendes, em entrevista a ÉPOCA. “Ao mesmo tempo que respeitamos os direitos humanos do sentenciado, tratamos de um tema de segurança pública.” Para o preso, o projeto é a oportunidade de voltar à liberdade não como um pária, mas como um trabalhador: “Esse trabalho é um passo muito importante na minha vida. Hoje me sinto integrado socialmente. Daqui para a frente quero crescer como advogado”, diz Pedro. Apenados que trabalham no STF recebem salários que variam de R$ 550 (ensino fundamental completo) a R$ 650 (ensino médio completo), auxílio transporte e vale-alimentação. O contrato é feito por meio de uma parceria firmada entre o Supremo e a Fundação de Amparo ao Preso (Funap), responsável pela triagem dos detentos. Os principais motivos de condenação dos empregados são homicídio, roubo, furto, receptação, tráfico e latrocínio. “Quando criamos o projeto, confesso que tive um certo receio”, afirma Amarildo Oliveira, secretário de Recursos Humanos do STF. “Com o tempo percebi que não havia nada que contraindicasse a me-dida.”
O projeto do STF é resultado de uma série de medidas tomadas para fazer valer o direito à convivência social do condenado, solu-cionar o problema da superlotação das cadeias e reduzir os índices de criminalidade. Ele nasceu na esteira dos mutirões carcerários, criados em agosto de 2008 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para promover a revisão das detenções provisórias e definitivas no país. Até agora, cerca de 20 mil presos foram libertados em mutirões. Os condenados que já cumpriram suas penas são atendidos por outro programa criado pelo CNJ, o Começar de Novo.
Em março deste ano, o CNJ apresentou ao Congresso Nacional uma proposta de incentivo fiscal a empresas que contratarem presos e ex-detentos. Pode ser mais um passo na direção certa, mas o Brasil precisa percorrer um longo caminho para ressocializar seus con-denados. Ainda não há uma diretriz nacional que oriente as ações estaduais e nem mesmo um alinhamento dos diferentes agentes ligados à questão que caracterize o papel das atividades educacionais e laborativas nas penitenciárias do país. Por isso, vários programas implementados não se consolidam como política de Estado consistente e permanecem apenas como mais um entre vários projetos. “Ao longo da história da execução penal brasileira temos iniciativas louváveis que foram esquecidas em virtude da nossa cultura de descontinuidade administrativa para a política pública”, afirma Elionaldo Fernandes Julião, da Uerj. Ele pesquisou em sua tese de dou-torado a situação do sistema carcerário nacional. Em segundo lugar, inexistem informações oficiais detalhadas do perfil dos internos e dos índices de reincidência nos Estados. Para completar o quadro, a lei de execução penal brasileira está longe de funcionar na prática. “Precisamos de uma justiça criminal mais efetiva que respeite as regras básicas da legislação vigente”, diz o ministro Gilmar Mendes. “Nosso desafio é colocar em prática o que já está no papel”.
Fonte: Revista Época
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