segunda-feira, 28 de junho de 2010

O Juridiquês



Rui Barbosa, o ladrão de galinhas e o juridiquês

Márcio Barbosa Lima

O que existe em comum entre o caso lendário envolvendo o processo de comunicação estabelecido entre o notável jurista baiano Rui Barbosa e um ladrão de galinhas e um caso real envolvendo o processo de comunicação estabelecido entre o Judiciário e o decano de Ensino e Graduação da UnB? A fim de dirimir tal enigma semiótico, passaremos a pormenorizar as duas situações mencionadas.

Um conhecido conto popular retrata que um ladrão foi surpreendido pelas palavras de Rui Barbosa ao tentar roubar galinhas em seu quintal:

Não o interpelo pelos bicos de bípedes palmípedes, nem pelo valor intrínseco dos retrocitados galináceos, mas por ousares transpor os umbrais de minha residência. Se foi por mera ignorância, perdôo-te, mas se foi para abusar da minha alma prosopopéia, juro pelos tacões metabólicos dos meus calçados que dar-te-ei tamanha bordoada no alto da tua sinagoga que transformarei sua massa encefálica em cinzas cadavéricas.

O ladrão, todo sem graça, perguntou:

Mas como é, seu Rui, eu posso levar o frango ou não?

No contexto em que fui procurador da UnB ocorreu uma situação que me fez lembrar o episódio envolvendo Rui Barbosa e o ladrão de galinhas. Muitos servidores estudantes, removidos no interesse da Administração, provenientes de instituições particulares logravam obter o direito à matrícula na UnB por decisões judiciais, em torno das controvérsias que se firmaram em torno da interpretação do artigo 99 da Lei 8.112/90.

Em determinado caso concreto, o decano dirigiu-se à Procuradoria e, na condição de autoridade impetrada, solicitou-me um esclarecimento acerca de uma decisão do TRF da 1ª Região, no sentido de que a corte havia negado efeito suspensivo ao agravo regimental interposto da decisão que concedeu efeito suspensivo ativo em sede de agravo de instrumento interposto, à sua vez, em desfavor de uma decisão liminar exarada em mandado de segurança impetrado em 1º grau de jurisdição. O decano, depois de ler a referida decisão, indagou-me desconsertado: “O aluno fica ou sai da UnB?”.

O caso relatado é muito preocupante, pois é até compreensível que um simples “ladrão de galinhas” não venha a entender as palavras de um dos maiores intelectuais da história do Brasil. Por outro lado, um decano de uma prestigiada universidade brasileira não ter conseguido compreender uma decisão judicial que lhe fora imposta para o seu mero cumprimento configura um obstáculo para a efetividade da Justiça.

O direito processual vem sendo a tal ponto deturpado, que o juiz federal André Lenart veiculou, em seu blog, “O incrível caso do processo que nunca acaba”, que fora extraído do Diário do STF: “Agravo regimental (AgR) contra decisão monocrática do Presidente (do STF), que negou seguimento liminarmente a AgR contra decisão do então Presidente, que rejeitou embargos declaratórios (ED) opostos a acórdão do Plenário, que rejeitou AgR contra decisão do Presidente, que rejeitou agravo oposto contra decisão do Presidente, que negou trânsito a RE interposto de acórdão do Plenário transitado em julgado, que rejeitou ED opostos a acórdão do Plenário, que negou provimento a AgR contra decisão do relator, que pronunciara a impossibilidade jurídica de pedido formulado em procedimento rescisório.”

É preciso rever a profunda complexidade que o juridiquês assumiu em nosso país. De tal sorte, que a Associação dos Magistrados Brasileiros, em 2005, promoveu a campanha pela simplificação da linguagem jurídica. No contexto de tal campanha foi premiado um trabalho da acadêmica Cláudia Dantas Ferreira da Silva, que citou as palavras do poeta Thiago de Mello: “Falar difícil é fácil. O difícil é falar fácil”.

Realmente, os profissionais jurídicos reproduzem um discurso de poder de matiz ideológico e de caráter truncado, prolixo e fechado. Iniciativas como a da AMB vem sendo seguidas por todo o Judiciário e vêm sendo instituídos órgãos norteados pelos princípios da simplicidade e da informalidade, como os Juizados Especiais, sem falar na revolucionária justiça itinerante, que quebra todos os paradigmas de um Judiciário humanamente afastado da realidade histórico-social.

Mas é preciso reconhecer que ainda falta um longo caminho rumo à democratização da linguagem da Justiça. É preciso reagir sob pena de o usuário do Judiciário, se antes não se transformar, nas palavras de Rui Barbosa, em “cinzas cadavéricas”, possa ao menos compreender o conteúdo da decisão que lhe foi imposta e não indague, de forma perplexa ao advogado, ao magistrado, ao defensor ou ao membro do MP: “E aí seu doutor, diante do que está escrito, eu posso, ou não, levar o meu direito?”.

Artigo disponível em:
http://www.jusbrasil.com.br/noticias/2201173/rui-barbosa-o-ladrao-de-galinhas-o-juridiques-e-o-decano-da-unb


Problemas da linguagem jurídica. Tecnicismo, rebuscamento, prolixidade

Patrício Coelho Noronha

Assim como outras ciências, o Direito possui linguagem própria, com vocabulário especial, de difícil compreensão, mas não menos justificável que o da Medicina, Informática e outras. Tal especificidade, por sua vez, confere à linguagem jurídica um grau de hermetismo que, embora não de todo inquestionável, explica-se pela necessidade de precisão dos conceitos, para muitos dos quais dificilmente se encontram formas alternativas mais simples de substituição.

No entanto, muitas vezes se nota que do tecnicismo a bom termo desanda-se para o rebuscamento, para o emprego de construções excessivamente requintadas, floreadas, o que até pode dar à forma dos textos uma feição cintilante, porém não raro vazia de substância. Essa inclinação para o ornato se verifica tanto no nível lexical, que é o plano da escolha das palavras, quanto no sintático, em que se trabalha a combinação entre elas e os demais constituintes estruturais do período – e ainda no semântico (nível do significado), visto que é a partir de tais escolhas e combinações que se constroem sentidos.

Na dimensão lexical, isso se observa sobretudo no preciosismo do vocabulário, no uso de expressões latinas e arcaizantes. “Pretório Excelso” no lugar de Supremo Tribunal Federal, “peça exordial” no de petição inicial, “objurgatório” no de censurável; e latinismos do tipo a quo (recorrido), ex vi legis (por força de lei), ab initio (desde o início), quantum satis (quanto baste, suficiente), desideratum decisum (pretendido pela decisão) são apenas algumas das algaravias presentes em diversos textos jurídicos.

No plano sintático, a mesma tendência ao adorno se percebe nas construções invertidas ou fora da ordem direta — não raro com a anteposição desnecessária (ou sem razão estilística) de verbos aos sujeitos —, nas frases e períodos longos, centopéicos, sem economia alguma de subordinações e intercalações, o que quase sempre concorre para a incidência nos vícios linguísticos de prolixidade e verbosidade.

Tudo isso somado — rebuscamento, palavrório e tecnicismo ad nauseam — redunda, no plano semântico, em barreiras de leitura que quase impossibilitam a apreensão do sentido, a recepção do texto, sobretudo pelo leitor médio, pelo homem comum. Daí o questionamento: como pode esse mesmo homem atuar de modo mais efetivo no contexto social, político e econômico em que vive se não decifra mínima ou razoavelmente os signos do Direito?

Contudo, para aqueles mais empedernidos na defesa do juridiquês, convém a sugestão de que restrinjam o hermetismo aos textos jurídicos de natureza acadêmica, científica ou doutrinária, dado o público específico a que se dirigem. Já quanto aos de lavra forense, que se destinam diretamente ao público “normal”, hão de se valer de maior simplicidade, objetividade e clareza, para o fim de se ter uma prestação jurisdicional mais eficiente, legítima, cidadã.

Nesse compasso, é oportuno evocar o discurso de posse da ministra Ellen Gracie como presidente do Supremo Tribunal Federal, importante não apenas pelo caráter histórico de trazer as primeiras palavras de uma mulher à frente da nossa Suprema Corte, mas também por demonstrar, entre outras, preocupação com a acessibilidade da linguagem forense:

“Que a sentença seja compreensível a quem apresentou a demanda e se enderece às partes em litígio. A decisão deve ter caráter esclarecedor e didático. Destinatário de nosso trabalho é o cidadão jurisdicionado, não as academias jurídicas, as publicações especializadas ou as instâncias superiores. Nada deve ser mais claro e acessível do que uma decisão judicial bem fundamentada. E que ela seja, sempre que possível, líquida. Os colegas de primeiro grau terão facilitada, a partir de agora, esta tarefa de fazer chegar as demandas a conclusão.”

Artigo disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=13581

Fonte: Portal Memes Jurídico

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