por Guilherme de Souza Nucci
Constitui poder-dever do Judiciário fazer valer os comandos constitucionais vigentes, em particular os que se referem aos direitos e garantias humanas fundamentais. Uma das preocupações do legislador-constituinte baseou-se no combate ao racismo, em busca de uma sociedade igualitária, pluralista e, realmente, democrática. Desse modo, estabelece-se no art. 5º, XLII, da CF, que "a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei". Com base nesse preceito, emergem, basicamente, duas questões: a) o significado de racismo; b) a fonte legislativa de previsão dos tipos incriminadores. Determinando-se o conteúdo do termo e podendo-se visualizar a legislação de apoio ao texto constitucional, resta concluir serem todos os delitos de racismo inafiançáveis e imprescritíveis, necessariamente sujeitos à pena de reclusão.
Certamente, urge levantar, ainda que em breves palavras, o propósito do constituinte ao enumerar três fatores de sustentáculo de combate ao racismo: inviabilidade de liberdade provisória + necessidade de punição a qualquer tempo + sanção penal compatível com o regime de reclusão. A previsão de inafiançabilidade torna-se inútil em face do sistema processual penal vigente, que admite a liberdade provisória, sem fiança, para vários crimes, considerados graves. Logo, o delito de racismo, embora não admita o pagamento de fiança, poderia comportar a liberdade sem a caução legal.
De outra sorte, a imprescritibilidade não faz parte da tradição do Direito Penal brasileiro, até pelo fato de infrações penais muito mais graves comportarem a extinção da punibilidade pelo decurso do tempo, como ocorre com o homicídio, o estupro ou a extorsão mediante seqüestro, apenas para ilustrar. A pena de reclusão, por si só, não representa gravame, pois admite, conforme a pena cominada, os benefícios da Lei 9.099/95 (suspensão condicional do processo ou transação).
Há, no entanto, por trás dessa disposição, um símbolo político-social, configurando uma das metas do Estado Democrático de Direito, qual seja a luta pela igualdade entre todos os brasileiros e a eliminação da discriminação e do preconceito, fatores de corrosão da estabilidade em qualquer sociedade civilizada. Independentemente, portanto, da eficiência e da utilidade dos requisitos idealizados, é fato ser o racismo um crime considerado grave, cuja punição precisa ser imposta pelo Judiciário, quando comprovado.
O racismo é uma postura voltada à visualização de divisão entre os seres humanos, calcada em raças, algumas consideradas superiores às outras, pela existência de pretensas qualidades ou virtudes aleatoriamente eleitas. Cultiva-se, então, um sentimento segregacionista, apartando-se a sociedade em camadas e estratos, merecedores de vivência distinta dos demais. Em verdade, não há raças definidas, distintas e diferenciadas no mundo. Existe apenas a raça humana, com seus naturais contrastes superficiais de aparência, cercados de costumes e tradições diversificadas. Nesse sentido, com razão e sensibilidade, decidiu o Supremo Tribunal Federal em 17 de setembro de 2003 (HC-QO 82.424-RS, Pleno, rel. acórdão Mauricio Corrêa, m. v.).
Assim sendo, pode-se alijar qualquer minoria, quando identificada no seio social, sob o pretexto de ser inferior à maioria discriminatória. Ocorrendo tal situação, identifica-se, perfeitamente, a prática do racismo, tal como idealizado pelo texto constitucional.
Respeitando-se o princípio-garantia da legalidade (não há crime sem prévia definição legal, nem pena sem prévia cominação legal), deve-se buscar na legislação ordinária os delitos constitutivos do racismo, como apregoado pelo referido art. 5º, XLII ("nos termos da lei"). Inexiste qualquer vedação ou limite para a constituição de tipos penais incriminadores, estabelecendo delitos calcados na prática do racismo. Quer isto dizer que a fonte legislativa para tanto deve ser o Poder Legislativo Federal, não importando em qual código ou lei encaixa-se a figura típica.
A Lei 7.716/89, sem dúvida, tipifica alguns dos delitos de racismo, tal como faz crer o seu art. 1º: "Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional". Essa norma de abertura integra os demais tipos penais, que prescindem, então, da motivação expressa, visto já constar do mencionado art. 1º. Ilustrando, o art. 11 preceitua ser crime "impedir o acesso às entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais e elevadores ou escada de acesso aos mesmos". Qual deve ser a motivação? A constante do art. 1º, vale dizer, a discriminação ou preconceito racial. A pena prevista para tal delito é de reclusão, de um a três anos e, por conta do texto constitucional, tal infração é inafiançável e imprescritível.
Indaga-se, entretanto, se somente os delitos constantes da Lei 7.716/89 constituem a prática de racismo, ao que se busca uma resposta negativa. Nada impede a autonomia legislativa para, após a edição da referida lei, criar outras figuras construtivas de crimes de racismo, embora espargidas por outros textos legais. Em nosso entendimento, a injúria racial, prevista no art. 140, § 3º, quando lastreada em discriminação ou preconceito racial, constitui, igualmente, nítida prática do racismo. Aliás, a pena é idêntica ao crime exemplificado (art. 11), constante da Lei 7.716/89, ou seja, reclusão, de um a três anos. Acresce-se a multa. É certo tratar-se de infração penal, cuja iniciativa é condicionada à representação da vítima. Tal medida se dá, exclusivamente, pelo fato de haver relação com a honra. Torna-se justo aguardar a manifestação do ofendido, que saberá o grau de necessidade ou alcance do processo judicial para apurar a culpa do agressor.
Entretanto, quando se visualiza o crime de redução a condição análoga à de escravo, motivada por preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem (art. 149, § 2º, II, CP), tem-se outra prática de racismo, de ação pública incondicionada, cuja pena é de reclusão, de três a doze anos. Nota-se ser a infração penal muito mais grave que as previstas na Lei 7.716/89, já que envolve a liberdade individual. Porém, o fato de ser a liberdade individual um dos bens jurídicos tutelados, não pode olvidar a intenção legislativa de conferir maior punição ao crime, visto abranger a motivação racista. Dessa maneira, o outro bem jurídico tutelado é a igualdade dos seres humanos perante a lei.
Em suma, o racismo importa em exercício de mentalidade segregacionista, visando à superioridade de alguns seres humanos sobre outros, com nítido fator de desagregação social. Deve-se combatê-lo, com vistas à garantia dos princípios norteadores do Estado Democrático de Direito. Dessa meta advém a cautela de não se deixar levar, o operador do Direito, pela singela posição de alguns tipos penais em lei especial (Lei 7.716/89), como se fosse o único cenário para a previsão de crimes racistas. Na esteira de respeito ao princípio da legalidade, deve-se conceber como prática de racismo todos os delitos vinculados a esta motivação, presentes em qualquer lei, inclusive, por óbvio, no Código Penal.
Fonte: Carta Forense
Constitui poder-dever do Judiciário fazer valer os comandos constitucionais vigentes, em particular os que se referem aos direitos e garantias humanas fundamentais. Uma das preocupações do legislador-constituinte baseou-se no combate ao racismo, em busca de uma sociedade igualitária, pluralista e, realmente, democrática. Desse modo, estabelece-se no art. 5º, XLII, da CF, que "a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei". Com base nesse preceito, emergem, basicamente, duas questões: a) o significado de racismo; b) a fonte legislativa de previsão dos tipos incriminadores. Determinando-se o conteúdo do termo e podendo-se visualizar a legislação de apoio ao texto constitucional, resta concluir serem todos os delitos de racismo inafiançáveis e imprescritíveis, necessariamente sujeitos à pena de reclusão.
Certamente, urge levantar, ainda que em breves palavras, o propósito do constituinte ao enumerar três fatores de sustentáculo de combate ao racismo: inviabilidade de liberdade provisória + necessidade de punição a qualquer tempo + sanção penal compatível com o regime de reclusão. A previsão de inafiançabilidade torna-se inútil em face do sistema processual penal vigente, que admite a liberdade provisória, sem fiança, para vários crimes, considerados graves. Logo, o delito de racismo, embora não admita o pagamento de fiança, poderia comportar a liberdade sem a caução legal.
De outra sorte, a imprescritibilidade não faz parte da tradição do Direito Penal brasileiro, até pelo fato de infrações penais muito mais graves comportarem a extinção da punibilidade pelo decurso do tempo, como ocorre com o homicídio, o estupro ou a extorsão mediante seqüestro, apenas para ilustrar. A pena de reclusão, por si só, não representa gravame, pois admite, conforme a pena cominada, os benefícios da Lei 9.099/95 (suspensão condicional do processo ou transação).
Há, no entanto, por trás dessa disposição, um símbolo político-social, configurando uma das metas do Estado Democrático de Direito, qual seja a luta pela igualdade entre todos os brasileiros e a eliminação da discriminação e do preconceito, fatores de corrosão da estabilidade em qualquer sociedade civilizada. Independentemente, portanto, da eficiência e da utilidade dos requisitos idealizados, é fato ser o racismo um crime considerado grave, cuja punição precisa ser imposta pelo Judiciário, quando comprovado.
O racismo é uma postura voltada à visualização de divisão entre os seres humanos, calcada em raças, algumas consideradas superiores às outras, pela existência de pretensas qualidades ou virtudes aleatoriamente eleitas. Cultiva-se, então, um sentimento segregacionista, apartando-se a sociedade em camadas e estratos, merecedores de vivência distinta dos demais. Em verdade, não há raças definidas, distintas e diferenciadas no mundo. Existe apenas a raça humana, com seus naturais contrastes superficiais de aparência, cercados de costumes e tradições diversificadas. Nesse sentido, com razão e sensibilidade, decidiu o Supremo Tribunal Federal em 17 de setembro de 2003 (HC-QO 82.424-RS, Pleno, rel. acórdão Mauricio Corrêa, m. v.).
Assim sendo, pode-se alijar qualquer minoria, quando identificada no seio social, sob o pretexto de ser inferior à maioria discriminatória. Ocorrendo tal situação, identifica-se, perfeitamente, a prática do racismo, tal como idealizado pelo texto constitucional.
Respeitando-se o princípio-garantia da legalidade (não há crime sem prévia definição legal, nem pena sem prévia cominação legal), deve-se buscar na legislação ordinária os delitos constitutivos do racismo, como apregoado pelo referido art. 5º, XLII ("nos termos da lei"). Inexiste qualquer vedação ou limite para a constituição de tipos penais incriminadores, estabelecendo delitos calcados na prática do racismo. Quer isto dizer que a fonte legislativa para tanto deve ser o Poder Legislativo Federal, não importando em qual código ou lei encaixa-se a figura típica.
A Lei 7.716/89, sem dúvida, tipifica alguns dos delitos de racismo, tal como faz crer o seu art. 1º: "Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional". Essa norma de abertura integra os demais tipos penais, que prescindem, então, da motivação expressa, visto já constar do mencionado art. 1º. Ilustrando, o art. 11 preceitua ser crime "impedir o acesso às entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais e elevadores ou escada de acesso aos mesmos". Qual deve ser a motivação? A constante do art. 1º, vale dizer, a discriminação ou preconceito racial. A pena prevista para tal delito é de reclusão, de um a três anos e, por conta do texto constitucional, tal infração é inafiançável e imprescritível.
Indaga-se, entretanto, se somente os delitos constantes da Lei 7.716/89 constituem a prática de racismo, ao que se busca uma resposta negativa. Nada impede a autonomia legislativa para, após a edição da referida lei, criar outras figuras construtivas de crimes de racismo, embora espargidas por outros textos legais. Em nosso entendimento, a injúria racial, prevista no art. 140, § 3º, quando lastreada em discriminação ou preconceito racial, constitui, igualmente, nítida prática do racismo. Aliás, a pena é idêntica ao crime exemplificado (art. 11), constante da Lei 7.716/89, ou seja, reclusão, de um a três anos. Acresce-se a multa. É certo tratar-se de infração penal, cuja iniciativa é condicionada à representação da vítima. Tal medida se dá, exclusivamente, pelo fato de haver relação com a honra. Torna-se justo aguardar a manifestação do ofendido, que saberá o grau de necessidade ou alcance do processo judicial para apurar a culpa do agressor.
Entretanto, quando se visualiza o crime de redução a condição análoga à de escravo, motivada por preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem (art. 149, § 2º, II, CP), tem-se outra prática de racismo, de ação pública incondicionada, cuja pena é de reclusão, de três a doze anos. Nota-se ser a infração penal muito mais grave que as previstas na Lei 7.716/89, já que envolve a liberdade individual. Porém, o fato de ser a liberdade individual um dos bens jurídicos tutelados, não pode olvidar a intenção legislativa de conferir maior punição ao crime, visto abranger a motivação racista. Dessa maneira, o outro bem jurídico tutelado é a igualdade dos seres humanos perante a lei.
Em suma, o racismo importa em exercício de mentalidade segregacionista, visando à superioridade de alguns seres humanos sobre outros, com nítido fator de desagregação social. Deve-se combatê-lo, com vistas à garantia dos princípios norteadores do Estado Democrático de Direito. Dessa meta advém a cautela de não se deixar levar, o operador do Direito, pela singela posição de alguns tipos penais em lei especial (Lei 7.716/89), como se fosse o único cenário para a previsão de crimes racistas. Na esteira de respeito ao princípio da legalidade, deve-se conceber como prática de racismo todos os delitos vinculados a esta motivação, presentes em qualquer lei, inclusive, por óbvio, no Código Penal.
Fonte: Carta Forense
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