por Damásio de Jesus*
A 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, em 29 de junho de 2010, no Recurso Especial nº 637.361, que não comete crime o agente que mantém relações sexuais com menor de 13 anos de idade, com quem mantinha um namoro e com ele residia, tratando-se de fato atípico.
O réu havia sido absolvido em primeira instância e o Ministério Público do Estado de Santa Catarina tinha recorrido ao Tribunal de Justiça do Estado, sem sucesso, interpondo, então, recurso especial ao STJ. A Corte Superior entendeu que a conduta, realizada em 1998, antes da Lei nº 12.015/09, mostrava-se penalmente atípica em face do caráter relativo da (extinta) presunção de violência contida no (revogado) art. 224, a, do CP. O Min. Og Fernandes, relator, destacou em seu voto:
"Desta forma, a meu sentir, a decisão recorrida não se afasta da nova orientação da Sexta Turma, no sentido de que a presunção de violência pela menoridade, anteriormente prevista no art. 224, a, do Código Penal (hoje revogado pela Lei nº 12.015/09), deve ser relativizada conforme a situação do caso concreto, quando se tratar de vítima menor de 14 e maior de 12 anos de idade."
A decisão mostrou-se acertada e em perfeita consonância com a orientação firmada por nossos Tribunais, no sentido de não se poder interpretar a presunção de violência contida no ab-rogado art. 224, a, do CP, como absoluta. Afastava-se, assim, no caso, a caracterização do grave delito quando o contato sexual fosse consentido e envolvesse adolescente menor de 14 e maior de 12 anos.
Deve ficar consignado que o acórdão baseou-se na legislação anterior à Lei nº 12.015/09, que reformulou substancialmente os delitos previstos no Título VI da Parte Especial do Código Penal, notadamente o estupro. O fato que antes poderia configurar estupro com violência presumida constitui, agora, estupro de vulnerável:
"Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
Pena – reclusão, de 8 a 15 anos."
É de se questionar: se tivesse sido cometido nos dias de hoje, seria penalmente atípico, como entendeu o STJ, ou configuraria o gravíssimo crime hediondo acima definido?
Note-se que o Ministro relator sinalizou, em seu voto, que o fato, praticado na vigência da lei nova, poderia ser considerado criminoso, por não se admitir mais a discussão sobre o caráter absoluto ou relativo da presunção de violência, já que abolida tal sistemática de nossa legislação penal:
"Oportuno registrar, de igual modo, que os fatos ocorreram em 5 de junho de 1998, anteriormente à entrada em vigor da Lei nº 12.015/09, que, a princípio, teria o condão de elidir as discussões a respeito do tema, ao criar, em seu art. 217-A, o tipo penal do estupro de vulnerável."
Creio, entretanto, que a atitude do réu, nesse caso, apreciada sob a ótica do acórdão citado, a quem não cumpria analisar a prova, continuaria sendo considerada penalmente atípica, ainda que realizada sob a égide da nova sistemática dos crimes sexuais. Conforme afirmei em meu Direito Penal, "com respeito à vulnerabilidade decorrente da faixa etária, o escopo da mudança foi o de impedir a subsistência do entendimento segundo o qual a realização de atos sexuais voluntários com adolescentes menores de 14 anos pudesse ser considerada atípica, por ser relativa a presunção de violência em tais casos. Parece-nos, todavia, que o entendimento mencionado ainda encontrará embasamento jurídico" (Análise do art. 217-A. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 3.). Realmente, não se pode perder de vista que um comportamento somente adquire relevância penal quando formal e materialmente típico. É insuficiente, portanto, que a conduta se amolde às elementares do dispositivo incriminador, sendo necessário que haja, além disso, a efetiva lesão ao bem jurídico protegido.
O estupro de vulnerável (art. 217-A do CP) é crime contra a dignidade sexual (Título VI do CP). Não se mostra, previsto em capítulo diverso (Capítulo II), como o estupro comum (art. 213), delito contra a liberdade sexual. Como o título, de índole normativa, serve de elemento de interpretação, erigindo a dignidade, protegida pela Constituição Federal, como bem jurídico penal, de ver-se inexistir crime quando não é lesada formal e materialmente.
Para o Código Penal, vulneráveis são os menores de 14 anos (art. 217-A, caput), enfermos ou deficientes mentais e os que, por qualquer outra causa, não podem oferecer resistência (§ 1º). De observar-se que, quando se trata de enfermos e deficientes mentais, o tipo requer que não possuam "o necessário discernimento para a prática do ato" (referido § 1º). Por razão de coerência, o mesmo requisito deve estar presente quando se cuida de vítima menor de 14 anos de idade. Por isso, no caso, em face do que se apresentou aos julgadores, ausente o elemento qualificador do tipo, qual seja a ofensa à dignidade sexual, penso que inexistiu crime. Não há lesão ao bem jurídico quando uma adolescente de 13 anos de idade, voluntariamente, passa a morar com o autor e mantém com ele relações sexuais. Vítima vulnerável é a que apresenta uma diminuição física, psíquica ou sensorial, estacionada ou progressiva, configurando causa de dificuldade de aprendizagem, de relacionamento ou de integração laborativa, determinando um processo de desvantagem social ou de marginalização, segundo lei italiana de 5 de fevereiro de 1992.
Acredito que foi corretíssima a decisão do venerável acórdão.
* Damásio de Jesus é Jurista; Doutor Honoris Causa em Direito pela Universidade de Estudos de Salermo (Itália)
Fonte: Editora Magister
A 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, em 29 de junho de 2010, no Recurso Especial nº 637.361, que não comete crime o agente que mantém relações sexuais com menor de 13 anos de idade, com quem mantinha um namoro e com ele residia, tratando-se de fato atípico.
O réu havia sido absolvido em primeira instância e o Ministério Público do Estado de Santa Catarina tinha recorrido ao Tribunal de Justiça do Estado, sem sucesso, interpondo, então, recurso especial ao STJ. A Corte Superior entendeu que a conduta, realizada em 1998, antes da Lei nº 12.015/09, mostrava-se penalmente atípica em face do caráter relativo da (extinta) presunção de violência contida no (revogado) art. 224, a, do CP. O Min. Og Fernandes, relator, destacou em seu voto:
"Desta forma, a meu sentir, a decisão recorrida não se afasta da nova orientação da Sexta Turma, no sentido de que a presunção de violência pela menoridade, anteriormente prevista no art. 224, a, do Código Penal (hoje revogado pela Lei nº 12.015/09), deve ser relativizada conforme a situação do caso concreto, quando se tratar de vítima menor de 14 e maior de 12 anos de idade."
A decisão mostrou-se acertada e em perfeita consonância com a orientação firmada por nossos Tribunais, no sentido de não se poder interpretar a presunção de violência contida no ab-rogado art. 224, a, do CP, como absoluta. Afastava-se, assim, no caso, a caracterização do grave delito quando o contato sexual fosse consentido e envolvesse adolescente menor de 14 e maior de 12 anos.
Deve ficar consignado que o acórdão baseou-se na legislação anterior à Lei nº 12.015/09, que reformulou substancialmente os delitos previstos no Título VI da Parte Especial do Código Penal, notadamente o estupro. O fato que antes poderia configurar estupro com violência presumida constitui, agora, estupro de vulnerável:
"Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
Pena – reclusão, de 8 a 15 anos."
É de se questionar: se tivesse sido cometido nos dias de hoje, seria penalmente atípico, como entendeu o STJ, ou configuraria o gravíssimo crime hediondo acima definido?
Note-se que o Ministro relator sinalizou, em seu voto, que o fato, praticado na vigência da lei nova, poderia ser considerado criminoso, por não se admitir mais a discussão sobre o caráter absoluto ou relativo da presunção de violência, já que abolida tal sistemática de nossa legislação penal:
"Oportuno registrar, de igual modo, que os fatos ocorreram em 5 de junho de 1998, anteriormente à entrada em vigor da Lei nº 12.015/09, que, a princípio, teria o condão de elidir as discussões a respeito do tema, ao criar, em seu art. 217-A, o tipo penal do estupro de vulnerável."
Creio, entretanto, que a atitude do réu, nesse caso, apreciada sob a ótica do acórdão citado, a quem não cumpria analisar a prova, continuaria sendo considerada penalmente atípica, ainda que realizada sob a égide da nova sistemática dos crimes sexuais. Conforme afirmei em meu Direito Penal, "com respeito à vulnerabilidade decorrente da faixa etária, o escopo da mudança foi o de impedir a subsistência do entendimento segundo o qual a realização de atos sexuais voluntários com adolescentes menores de 14 anos pudesse ser considerada atípica, por ser relativa a presunção de violência em tais casos. Parece-nos, todavia, que o entendimento mencionado ainda encontrará embasamento jurídico" (Análise do art. 217-A. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 3.). Realmente, não se pode perder de vista que um comportamento somente adquire relevância penal quando formal e materialmente típico. É insuficiente, portanto, que a conduta se amolde às elementares do dispositivo incriminador, sendo necessário que haja, além disso, a efetiva lesão ao bem jurídico protegido.
O estupro de vulnerável (art. 217-A do CP) é crime contra a dignidade sexual (Título VI do CP). Não se mostra, previsto em capítulo diverso (Capítulo II), como o estupro comum (art. 213), delito contra a liberdade sexual. Como o título, de índole normativa, serve de elemento de interpretação, erigindo a dignidade, protegida pela Constituição Federal, como bem jurídico penal, de ver-se inexistir crime quando não é lesada formal e materialmente.
Para o Código Penal, vulneráveis são os menores de 14 anos (art. 217-A, caput), enfermos ou deficientes mentais e os que, por qualquer outra causa, não podem oferecer resistência (§ 1º). De observar-se que, quando se trata de enfermos e deficientes mentais, o tipo requer que não possuam "o necessário discernimento para a prática do ato" (referido § 1º). Por razão de coerência, o mesmo requisito deve estar presente quando se cuida de vítima menor de 14 anos de idade. Por isso, no caso, em face do que se apresentou aos julgadores, ausente o elemento qualificador do tipo, qual seja a ofensa à dignidade sexual, penso que inexistiu crime. Não há lesão ao bem jurídico quando uma adolescente de 13 anos de idade, voluntariamente, passa a morar com o autor e mantém com ele relações sexuais. Vítima vulnerável é a que apresenta uma diminuição física, psíquica ou sensorial, estacionada ou progressiva, configurando causa de dificuldade de aprendizagem, de relacionamento ou de integração laborativa, determinando um processo de desvantagem social ou de marginalização, segundo lei italiana de 5 de fevereiro de 1992.
Acredito que foi corretíssima a decisão do venerável acórdão.
* Damásio de Jesus é Jurista; Doutor Honoris Causa em Direito pela Universidade de Estudos de Salermo (Itália)
Fonte: Editora Magister
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