quinta-feira, 9 de abril de 2009

Ex-presidiário prepara jovens para futuro melhor

Vila Aliança, bairro de Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Samuel Muniz de Araújo, mais conhecido como Samuca, foi um dos assaltantes e sequestradores do Rio de Janeiro mais visados na década de 90. Foi preso, condenado, cumpriu pena e deu uma nova direção à sua vida. Na cadeia, em vez de se entregar ao destino, descobriu o valor da solidariedade. Hoje, ele é uma das lideranças do Centro Cultural A História que Eu Conto, que faz um trabalho de resgate social de crianças e adolescentes por meio de música, capoeira, break, estamparia, teatro, jiu-jítsu, basquete e reforço escolar.
"As ações estão ligadas à autoestima das pessoas, integração familiar, autossustentabilidade e mercado de trabalho. Vivemos numa comunidade de baixa renda e a dificuldade financeira contribui bastante para que os garotos entrem no crime e as meninas na prostituição", explicou Samuca, cuja trajetória é marcada pela mudança radical de vida, do crime à cidadania.
Nas ruas de Vila Aliança, Samuca cresceu em meio à violência urbana e às dificuldades de uma família com nove irmãos. Aos 11 anos começou a trabalhar como ajudante de oficina para aumentar a renda da família. Aos 15, percebeu que teria de deixar de lado o sonho de ser jogador de futebol e foi trabalhar como camelô com um dos irmãos, em Niterói. Um ano depois estava trabalhando em um barco pesqueiro em Cabo Frio, época em que chegou a ganhar um bom dinheiro. Pouco tempo depois sua mãe faleceu. "Minha cabeça virou. Era o mais apegado a ela. Meu pai era o herói que eu não via durante a semana e que colocava dinheiro em casa. Parei de trabalhar e nada mais dava certo. Optei por entrar para a criminalidade, pois era uma realidade muito próxima", afirmou.
Samuca teve uma trajetória tão curta no crime quanto à de muitos de seus parceiros. A diferença é que o final foi feliz. Dos 16 aos 22 anos, desfrutou de poder e foi idolatrado pelos vizinhos, assim como hoje alguns criminosos costumam ser nos morros cariocas, principalmente aqueles que se mantêm ligados ao lugar onde cresceram. Envolvido com o crime, fez uso de drogas, assaltou, sequestrou. Na comunidade, passou a ser identificado como um bandido esperto, frio, estrategista, com inteligência excepcional. Ganhou respeito do alto escalão do crime, e se tornou um dos homens mais procurados pela polícia do Rio de Janeiro.
Com a necessidade de estar sempre escondido, de casa em casa, perdeu o convívio familiar, algo que passou a incomodá-lo. "Comecei a perceber a questão da carência. Você começa a perder a liberdade porque sabe que não pode facilitar. É muito complicado quando não se tem mais uma vida de cidadão comum. Não é possível dormir e acordar em casa, ter contato com a família. Às vezes, até pela própria segurança das outras pessoas, é preciso manter o afastamento", disse.
Samuca foi detido e condenado a 15 anos de prisão por sequestro no dia de seu aniversário. "Acho que eu renasci naquele dia", diz. O dia-a-dia na prisão era angustiante e, para enfrentar a realidade, tentava evitar qualquer emoção ou envolvimento, acentuando sua frieza. Seu limite foi querer planejar ações terroristas contra o poder público, pois achava que as lideranças políticas eram as grandes responsáveis pelos problemas do país. "Neste processo, eu descobri que tinha um grande inimigo: meus sentimentos. Quando eu pensava em meus filhos, não conseguia levar adiante os planos do crime", revelou.
Na cadeia, Samuca buscou o apoio profissional de uma psicóloga que o orientou a participar de reuniões kardecistas. "Assumi um compromisso com Deus, comecei a perdoar, achei o meu equilíbrio. Um dia, ouvi uma voz me dizendo que eu sairia da cadeia em novembro. Decidi, então, abrir mão do advogado que o tráfico pagava pra mim porque, se Deus iria me colocar na rua, eu não poderia sair por meio de dinheiro ilícito. Hoje, acredito que, quando fui preso, nasci de novo. Deus estava me dando uma segunda oportunidade" afirmou.
Em novembro de 1996, foi transferido para uma unidade semiaberta. "Ali, entreguei minha vida nas mãos de Deus e pedi forças para não usar mais drogas, para me firmar com minha música, que era de onde eu queria tirar o meu sustento. Como forma de agradecer a Deus, eu divulgaria minha vida e minha história, para que crianças e adolescentes não precisassem se envolver com a criminalidade. E serviria, também, como referência para quem se encontrava no sistema penal", disse.
A mudança, no entanto, não foi fácil. "Quando eu saí, me ofereceram controle sobre o tráfico, talvez pela capacidade de articulação, de liderar, de fazer dinheiro. Eu não quis. Aí, me ofereceram uma pistola para eu portar por questão de segurança. Mas minha arma era Deus. Depois, me ofereceram um salário somente pelo que eu havia representado no passado. Rejeitei. Por fim, recusei a proposta de um plano de sequestro".
Passadas as tentações, Samuca começou a trabalhar na construção civil. Mas seu grande desejo era trabalhar com música. "Formei uma banda de pagode, onde fiquei durante dois anos". Depois, criou um novo grupo musical a fim de interligar ações sociais ao trabalho. Ao grupo veio associar-se uma banda da comunidade que, por sua vez, era ligada a um projeto do Instituto Brasileiro de Inovação em Saúde Social (Ibiss). Os componentes da banda eram responsáveis pela realização de oficinas de percussão, aulas de violão e escolinha de futebol.
Durante seis anos dividiu-se entre os shows e as oficinas. Nesse período, adquiriu conhecimento e visibilidade. "Porém, na medida em que o tempo passou, as relações começaram a se desgastar. Optei por sair, em busca de outros projetos, mas mantendo as amizades", relembrou. "Após participar das bandas Ponto BR e Movimento na Rua, além de diversas articulações na comunidade e com instituições, conseguiu fundar oficialmente, no ano passado, o Centro Cultural A História que Eu Conto. Ele surgiu a partir de um documentário audiovisual sobre a saída do jovem Melk (hoje com 18 anos) do envolvimento com o tráfico".
Samuca divide a diretoria do Centro com dois amigos: Jeferson Cora, coordenador de marketing e comunicação social; e George Cleber (conhecido como Binho), presidente e responsável pelas relações institucionais do Centro. Ao todo, a equipe é formada por 20 voluntários. Mesmo com pouco tempo de existência, o Centro já estabeleceu parcerias com a Associação Comercial Empresarial da Região de Bangu (Acerb), Casa da Moeda do Brasil, Faculdades Simonsen, Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), Fundação Mokiti Okada, Instituto Terrazul, ONG Kinguelê e SESC Rio, entre outros. "A ideia é que, dentro de cinco anos, o Centro esteja entre as maiores potências em termos de cultura, no Brasil", afirmou.
O Centro está localizado na divisa entre os bairros de Vila Aliança e Senador Camará, onde, no passado, funcionou uma escola municipal. "A escola saiu daqui por causa de um episódio de violência ocorrido em 2007. Ora, o país todo hoje é uma área de risco. O maior risco que nós corremos está sendo produzido por nós mesmos", disse, para em seguida questionar: "Quem somos nós, como seres humanos, e o que estamos fazendo para a sociedade e para o mundo ser melhor? O que nós contribuímos para isso? Eu digo isso nas minhas músicas. Se defender do mal é praticar o bem".
O nome do Centro, de acordo com Samuca, é uma referência ao nome do livro que será lançado este ano. "Meu livro, que eu já estava escrevendo antes da criação do Centro, vai se chamar A História que Eu Conto. O motivo é que, normalmente, a história do cara que vive no crime é contada por outras pessoas. Eu sou alguém que viveu no crime e que está vivo para contar a história. Daí vem o nome do livro", revelou.
Ele ressaltou também que, como conseguiu ficar vivo para contar a história, prometeu a Deus não ficar com o dinheiro que o livro renderá. "Doarei tudo o que for arrecadado para a própria instituição. Por isso, achamos melhor que o nome do Centro fosse o nome do livro também. O Centro não é mais a história do Samuca. Ele é a história de toda a comunidade e das pessoas que querem mudar o contexto em que vivem", completou.
"Queremos mostrar que existem grandes potenciais dentro da comunidade e trabalhar em função do desenvolvimento local, mostrar que temos muita força e valor", afirmou Samuca. O projeto conta com mais de 100 alunos com idades entre 8 e 16 anos. As inscrições nas oficinas já estão abertas e as novidades de 2009 são os cursos de inglês, pré-vestibular, padeiro e confeiteiro.
"A ideia é que também tenhamos uma confecção, para trazer as mães para esse trabalho. Quando você traz a mãe e tem ela fazendo um trabalho por perto, com acompanhamento de um educador social, você começa a fazer com que os jovens fiquem mais próximos da família. Esse trabalho abre espaço para que o pai também participe. Muitas vezes o sujeito sai da cadeia e as portas são fechadas por ele ser ex-presidiário", disse, revelando que quer cantar e compor mais. "É o que me faz feliz, é o que eu amo. Espero voltar aos palcos em 2009, cantar minhas mensagens e levar amor para as pessoas. Acho que a gente precisa disso. Falar de amor".
Este ano, o Centro Cultural A História que Eu Conto iniciou suas atividades com a realização do 4º Encontro de Redes Comunitárias, resultado de uma parceria com o SESC Rio. "A parceria vem desde 2005, quando participamos pela primeira vez de um encontro. De lá pra cá, o SESC Rio faz nossa ponte para outras instituições e nos apresentou a realidade de outras comunidades, como a Vila do João e a Cidade Alta, além de nos ajudar a ampliar a visão de mundo no sentido de implantar o modelo que se queria fazer aqui. Ter esse apoio e ser uma referência de projeto em tecnologia social e desenvolvimento local, para ser implantado em outras comunidades e em outros municípios, nos orgulha muito", completa.
Fonte: Sesc Rio

Um comentário:

Cristiane disse...

Oi Kari, ler seu blog é aprender coisas novas, ser lembrados de coisa q talvez nós passava despercebidos é uma leitura de assuntos do nosso cotidiano q nós faz refletir.
Parabéns e feliz páscoa.
Cris