domingo, 12 de abril de 2009

A Notificação Obrigatória de Aborto na Hipótese do Art. 225, § 1º, II, do CP


por Eudes Quintino de Oliveira Júnior*
Abortamento seria a terminologia técnica e precisa para designar a interrupção da gravidez até a 20ª ou 22ª semana de gestação, contando ainda que o feto esteja pesando menos de 500 gramas, já que aborto, no sentido médico, vem a ser o ato de expelir o produto da concepção. A própria etimologia da palavra aborto ('ab', preposição latina, com o sentido de afastamento, separação e o verbo também latino 'aborini', com o significado de morrer, desaparecer, extinguir) deixa a entender que se trata de um ato humano, voluntário ou não, com a finalidade de interromper o desenvolvimento do feto no próprio nascedouro.
O nosso Código Penal (clique aqui), de regra, pune o crime de abortamento, quer seja provocado pela gestante ou por terceiro com ou sem seu consentimento, de acordo com os tipos penais descritos nos artigos 124, 125 e 126. Não pune, porém, quando realizado por médico, nas hipóteses mencionadas nos incisos I e II do artigo 128, in verbis:
I - se não há outro meio para salvar a vida da gestante;
II- se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante, ou, quando incapaz, de seu representante legal.
Diniz, com sua pertinente observação, deixa bem claro que não se trata de exclusão de criminalidade e a ausência de punição não retira o caráter delituoso do fato e sim se apresenta como uma causa de isenção de pena, escusa absolutória ou perdão legislativo:
"O art. 128, I e II, do Código Penal está apenas autorizando o órgão judicante a não punir o crime configurado, por eximir da sanção o médico que efetuar prática abortiva para salvar a vida da gestante ou para interromper gestação resultante de estupro. Tal isenção não elimina o delito, nem retira a ilicitude da ação danosa praticada. Suprimida está a pena, mas fica o crime".(1)
Mirabete, por sua vez, abraçando outro posicionamento, assim se expressa:
"São causas excludentes de criminalidade, embora a redação do dispositivo pareça indicar causas de ausência de culpabilidade ou punibilidade".
(2)
Capez, de forma incisiva, assim se pronuncia:
"Trata-se de causas excludentes da ilicitude, sendo, portanto, lícita a conduta daquele que pratica o aborto nas duas circunstâncias descritas no texto legal".(3)
Bitencourt, após definir como "aborto necessário" a hipótese do inciso I e sentimental ou humanitário a do inciso II, com propriedade, assevera:
"É uma forma diferente e especial do legislador excluir a ilicitude de uma infração penal sem dizer que 'não há crime', como faz o art. 23 do mesmo diploma legal. Em outros termos, o Código Penal, quando diz que 'não pune o aborto', está afirmando que o aborto é lícito naquelas duas hipóteses que excepciona no dispositivo em exame".(4)
Batendo-se também pela excludente de antijuridicidade ou de ilicitude, Pierangeli, com sua inafastável experiência, acentua:
"Não obstante possa parecer que se trata de exclusão de culpabilidade, pela falta de possibilidade de fazer recair um juízo de censura sobre a conduta da gestante, ou do médico, ou até mesmo de exclusão de punibilidade, a doutrina entende existir uma causa de exclusão de antijuridicidade ou ilicitude, pois a razão de ser da impunidade reside numa situação que, em alguns pontos, se assemelha ao estado de necessidade justificante. Por tais razões o nome de aborto necessário (do próprio Código) ou terapêutico é que lhe concede uma situação de necessidade (em que o perigo se apresenta para o futuro)".(5)
O juízo de desvalor ético-social consubstanciado num tipo penal revela as condutas que são consideradas reprovadas pela ordem jurídica, estabelecendo a linha divisória entre o que é permitido e o que é proibido. A conduta socialmente adequada, introduzida no direito penal por Welzel, ganhou corpo nos tipos permissivos, que abrangem as causas de justificação. No caso do aborto permitido, se realizado conforme a determinação legal, é de se concluir que o responsável agiu dentro dos padrões dominantes e aprovados pela generalidade das pessoas. "Não se pode castigar aquilo que a sociedade considera correto", já advertia Puig (6), com muita profundidade, apesar da singeleza da definição.
"A ação socialmente adequada, encerra a discussão o ensinamento de Toledo, amparado por Welzel, está desde o início excluída do tipo, porque se realiza no âmbito da normalidade social, ao passo que a ação amparada por uma causa de justificação só não é crime, apesar de socialmente inadequada, em razão de uma autorização especial para a realização da ação típica". (7)
Observado o caráter lícito da conduta ditado pelo legislador penal, não se incluem nas duas modalidades, nem mesmo por força de interpretação extensiva, o aborto eugênico, o aborto econômico ou social ou o aborto honoris causa, ou ainda, no caso de feto anencéfalo. A este respeito, tramita perante o STF, que já realizou várias audiências públicas, a ação intentada pela CNTS - Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, visando permitir à gestante interromper a gravidez, quando ficar constatado que o nascituro é portador de anencefalia.
Assim, quando o fato estiver revestido com as justificativas do artigo 128 do Código Penal é de se concluir que não há necessidade de se obter autorização judicial para realizar o procedimento médico do abortamento. A própria lei penal silencia a respeito. E, quando a lei não distingue, segundo a melhor regra de hermenêutica, ao intérprete não cabe distinguir.
"Não é necessário que o médico obtenha autorização judicial para interromper a gravidez, salienta Teles, porque não há norma legal neste sentido. Se numa situação de perigo atual ou iminente seria impossível e imprudente a busca da prestação jurisdicional, também na hipótese de um perigo futuro tal providência não se faz necessária, porque nenhum juiz pode conceder o que o ordenamento jurídico não lhe faculta dar. Nesses casos, o médico é o único juiz, não exigindo a norma a obtenção do consentimento da gestante ou de qualquer outra pessoa".(8)
O que não é proibido é permitido. A tradição jurídica sempre recomendou que os casos de estupro fossem encaminhados em primeiro lugar à autoridade policial para que tomasse as providências cabíveis e, em seguida, num procedimento desnecessário, nem mesmo recomendado pelo sexagenário Código Penal, o fato deveria ser levado até o Ministério Público e, finalmente, ao órgão judiciário para receber a chancela de aprovação do abortamento. Até mesmo os hospitais que faziam o atendimento de mulheres incluídas nas hipóteses autorizativas do aborto, exigiam a apresentação do boletim de ocorrência para a defesa jurídica da instituição e dos médicos e também como prova documental para constar no prontuário da gestante, como se fosse uma prova inequívoca do ato sexual cometido mediante violência ou grave ameaça.
"Não podem os códigos abranger explicitamente todas as relações e circunstâncias da vida, advertia o grande mestre da hermenêutica Maximiano, em constante, eterno evolver. Dilatam-se as regras de modo que abrangem hipóteses imprevistas. Do silêncio do texto não se deduz sua inaplicabilidade, nem tampouco a supremacia forçada do princípio oposto".(9) Quando a lei guarda silêncio, cabe ao intérprete procurar na proposital lacuna a norma mais adequada para ser aplicada, desde que seja consentânea e coerente com a mens legis.
O silêncio do legislador a respeito de eventual procedimento para a realização do abortamento nos casos permitidos permite a aplicação da regra hermenêutica a contrario sensu: ubi lex voluit dixit, ubi noluit tacuit, no sentido de que o intérprete deve atentar para o fato de que quando a lei quer ela determina, e silencia-se quando não tem interesse de regulamentar. É o chamado silêncio normativo. A lei não quer regulamentar porque a regra geral se aplica ao caso. A título de exemplo, nos crimes contra a honra, mais especificamente no artigo 144 do Código Penal, excepcionalmente, o legislador estabeleceu uma regra procedimental, que rigorosamente deve ser obedecida. Da mesma forma, na lei de interceptação telefônica, determina um ritual para a captação da gravação e do incidente de inutilização desse material. E vários outros casos.
O Ministério da Saúde, em boa hora, voltado para as ações norteadoras éticas e jurídicas dos direitos sexuais e reprodutivos ditados nos planos internacional (10) e nacional (11) de direitos humanos, normatizou os procedimentos para o abortamento em caso de gravidez com violência sexual, através dos documentos "Norma Técnica Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes de Violência sexual contra Mulheres e Adolescentes" e "Atenção Humanizada ao Abortamento", ambas publicadas em 2005.(12)
Referidas Normas representam na realidade um guia de cuidados às mulheres em situação de abortamento, orientando, principalmente, os profissionais da saúde para que possam oferecer uma atenção clínica necessária e adequada, seguindo rigorosamente os ditames éticos, legais e bioéticos. Em suma, as mulheres com gravidez não desejada, terão acesso a: a) informação e orientação humana e solidária; b) ao abortamento previsto em lei; c) à atenção de qualidade em complicações derivadas de abortos; d) ao planejamento reprodutivo pós abortamento.
Assim, na conjugação do pensamento do Código Penal com as Normas do Ministério da Saúde, a mulher violentada sexualmente pode comparecer a um hospital credenciado para o procedimento, narrar o fato à equipe médica, que não poderá negar o abortamento, se preenchidos os requisitos exigidos. Sem qualquer obrigatoriedade da mulher comparecer perante a autoridade policial ou Ministério Público, destinatários da notitia criminis e relatar o ato sexual violento e apresentar à equipe médica qualquer documento noticiando o registro de eventual delação criminosa.
O problema, desta forma, centraliza-se na área de saúde e cabe à equipe multidisciplinar, formada por médicos, psicólogos e assistentes sociais, em consonância com as diretrizes do SUS - Sistema Único de Saúde, acolher a mulher e oferecer a ela, que se encontra diante de um dilema crucial em sua vida, as orientações mais recomendadas, tais como: a) a faculdade de aceitar a maternidade e levar adiante a gestação; b) cuidados pré-natais necessários; c) alternativas após o nascimento, que incluem a permanência com o filho ou a inserção em lar adotivo; d) providências policiais e judiciais que possam ser adotadas, se forem de seu interesse; e) se a gestante for menor, a autorização desloca-se para o seu representante legal; f) se optar pelo ato cirúrgico, deve vir acompanhado do Termo de Consentimento, que é um documento no qual ela sponte propria, ou seu representante, confere à equipe autorização para a interrupção da gravidez; g) privacidade no atendimento e confidencialidade das informações; h) acompanhamento multidisciplinar pós-abortamento.
Tal orientação aproxima-se muito do conceito preconizado pelos romanos, no sentido de que o feto é apenas parte das vísceras da mulher – pars viscerum matris – e que dele podia dispor, de acordo com sua conveniência, pois, enquanto não fosse dado à luz não é considerado ser humano. Assim, com liberdade, a mulher, poderia decidir sobre a interrupção da gravidez em qualquer situação. Guardadas as diferenças, no regime atual, a mulher conserva a liberdade somente nos casos do permissivo legal do Código Penal. Quando, no entanto, a interrupção ocorria em razão de salvar a vida da mãe, prevalecia a regra da valoração da vida e os interesses da gestante: pro salute mulieris excusatur.
No crime de estupro previsto no artigo 213 do Código Penal, o legislador previu, excepcionalmente, três tipos de ação penal, para um mesmo delito, em circunstâncias pessoais diferenciadas. O artigo 225 § 1º dita a regra geral para a persecução desse crime contra a liberdade sexual. Trata-se de ação penal exclusivamente privada. O critério adotado foi justamente de proteger a vítima, evitar o alardeamento do fato, dotá-la de legitimidade e impedir o strepitus judicii, que, muitas vezes, concorre em igualdade de condições com próprio delito.
"A despeito das críticas, assinala Tourinho Filho com sua sempre pertinente observação, inúmeras legislações, inclusive a nossa, admitem a ação penal privada não só em face da tenuidade do interesse público lesionado, e, consequentemente, predominância do interesse particular sobre o interesse social, como também porque o strepitus fori - o escândalo - poderá ser mais prejudicial à vítima que a impunidade do ofensor".(13)
O interesse da vítima é que determinará a movimentação da máquina policial (art. 5º, § 5º CPP - clique aqui) com o oferecimento do requerimento ou da judiciária (art. 30 CPP), mediante oferecimento da peça delatória particular. Em razão da faculdade, a vítima, ou quem a represente, levada pelo princípio da conveniência e oportunidade, sempre guiará sua conduta da forma que lhe for mais conveniente para exercer ou não o jus accusationis. E é pertinente assinalar que com a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8072/90 - clique aqui), o crime de estupro foi erigido à categoria de crime hediondo próprio ou originário, outorgando à vítima deste delito um trunfo sem igual, tanto pela penalização como pelas restrições legais de liberdade. Tanto é verdade, que a vítima pode renunciar ao direito de queixa ou, já no âmbito da ação penal, praticar fato que provoque a perempção, ou até mesmo perdoar o querelado, provocando, em conseqüência, a extinção da punibilidade. É um poder desproporcional que se confere à vítima, levando-se em consideração o poder intimidativo que o crime em questão alcança.
Se a vítima ou seus representantes legais não tiverem recursos para prover as despesas do processo, sem privar-se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família, a ação penal se deslocará para a área pública e será condicionada à representação, de acordo com a regra do artigo 225 § 1º, I, do Código Penal. Tanto no art. 5º, § 4º, para iniciar o inquérito policial, como no artigo 24, este para o desenvolvimento do jus persequendi in juditio, ambos do Código de Processo Penal, a representação é exigida. A autorização não confere à vítima ou ao seu representante o direito de acionar judicialmente a tutela jurisdicional, que, por ser pública, compete exclusivamente ao Ministério Público, mas vai ofertar a ele sua aprovação para que provoque a justiça penal, que, uma vez deflagrada, transforma-se em ação incondicionada.
A última hipótese trata do crime de estupro praticado com abuso do pátrio poder, que, com o advento do novo Código Civil (clique aqui), passou a chamar poder familiar, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador. Ação penal passa a ser plena, de legitimidade exclusiva do Ministério Público, sem legitimidade concorrente, a não ser, é claro, na hipótese da ação penal privada subsidiária da pública. Por ser pública, vem acompanhada dos princípios da obrigatoriedade, indisponibilidade e legalidade, dentre outros, deixando entrever que o órgão persecutório estatal deve agir com obrigatoriedade, sem se apegar a qualquer resquício de faculdade existente na ação de cunho particular.
Jardim, em bem elaborado trabalho que envolve a ação penal pública, com ênfase voltada ao princípio da obrigatoriedade, assim se manifesta:
"Preferimos usar a expressão princípio da obrigatoriedade, a fim de tornar mais claro que o dever legal de o Ministério Público exercitar a ação penal é, na verdade, uma decorrência do próprio princípio da legalidade, que, numa perspectiva mais ampla, informa a atuação dos órgãos públicos no chamado Estado de Direito".(14)
Desta forma, a vítima de crime de estupro que tenha resultado gravidez, ou seu representante legal, obrigatoriamente, quando se tratar de ação penal privada, se entender conveniente, deverá intentar a queixa crime e quando a ação depender da representação, ofertar a condição de procedibilidade. Isto se pretender acionar a tutela jurisdicional penal contra o estuprador. Se não for movida por esta intenção, basta deixar escoar in albis o prazo estabelecido em lei, sem comunicar o fato à autoridade policial ou ao Ministério Público, que será automaticamente alcançado pelo prazo decadencial do artigo 38 do CPP. O crime, apesar de sua gravidade, apesar de sua hediondez, processa-se somente com a aquiescência do interessado, sem qualquer iniciativa estatal. Mesmo que esta tenha sido acionada, pelo requerimento ou pela representação, antes do oferecimento da queixa ou da denúncia, poderá ocorrer a retratação da representação ou do requerimento, sem falar ainda da renúncia, impossibilitando qualquer prosseguimento persecutório. Pratica-se o aborto legal no âmbito do atendimento médico e o assunto passa a ser pertinente à área de saúde e não da polícia ou justiça, apesar da ocorrência do ilícito.
O profissional da saúde responsável pelo abortamento legal, por sua vez, é acobertado pelo sigilo médico, que prescreve e veda ao médico: "Revelar fato que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por justa causa, dever legal ou autorização expressa do paciente".(15) Assim, não se vê obrigado a comunicar o fato a qualquer autoridade policial, judicial ou ao Ministério Público. Se a vítima, ou o representante legal, não teve qualquer interesse em fazê-lo, muito menos o profissional da saúde, que cumpriu seu dever funcional. Eventual comunicação deverá ser feita com o consentimento da vítima, seu representante, sempre com o intuito de protegê-la integralmente. Se, no entanto, somente o responsável pela prática do abortamento fizer a comunicação às autoridade referidas, quebrou um dever civil e ético, responsabilizando-se inclusive por eventuais danos morais, além, é claro, do cometimento do delito de violação do segredo profissional.(16) E, se por acaso, a paciente que procurou pelo abortamento relatou uma falsa notícia de estupro, a responsabilidade penal não recai na pessoa do médico, pois o erro foi plenamente justificado, uma vez que, se realmente existisse a situação de fato narrada, a ação seria legítima.(17)
E, quando se trata de paciente menor, compreendendo o parâmetro estabelecido no Estatuto da Criança e Adolescente, é incisivo e punitivo da mesma forma, quando prescreve: "Revelar segredo profissional referente a paciente menor de idade, inclusive a seus pais ou responsáveis legais, desde que o menor tenha capacidade de avaliar seu problema e de conduzir-se por seus próprios meios para solucioná-lo, salvo quando a não revelação possa acarretar danos ao paciente".(18)
No caso do crime ter sido cometido pelo padrasto ou pessoa que exerça poder familiar sobre a menor, que é crime de ação penal pública incondicionada, com o consequente aumento de metade da pena segundo a regra do art. 226 do Código Penal, revestido de hediondez, o responsável pelo abortamento fará a comunicação oficial ao delegado de polícia ou ao promotor de justiça ?
A situação ora apresentada é totalmente diferente das duas outras anteriores. Aqui o fato relevante vem a ser a custódia que o estuprador exerce sobre a vítima. Muitas vezes, é comum até em razão da pobreza cultural de nosso país, que a mãe tem conhecimento que seu companheiro, padrasto de sua filha menor, vem mantendo com ela continuados estupros e provoca sua gravidez. A mãe concorda com o abortamento e se nega fornecer informações à autoridade policial, com a intenção de favorecer seu companheiro. Tanto é verdade que, recentemente, uma menina de nove anos foi estuprada pelo padrasto e engravidou. Foi submetida ao abortamento, em razão da preservação de sua própria saúde, e a mãe indiciada em inquérito policial em razão de sua omissão diante da responsabilidade de proteger suas duas filhas, ambas abusadas sexualmente por seu companheiro.
Neste caso, foi retirado da genitora qualquer consentimento, pois a ação policial e judicial será desenvolvida obrigatoriamente pelos órgãos persecutórios estatais. O médico, por outro lado, não pode invocar o sigilo nesta situação em razão da justa causa estabelecida no seu Código de Ética, que lhe determina a comunicação. Além do que, trata-se de crime de ação penal pública incondicionada, de relevante informação para o Estado preservar a harmonia familiar e social.
Além disso, o Estatuto da Criança e Adolescente prevê em seu artigo 136, IV, dentre as atribuições do Conselho Tutelar: "... encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que constitua infração administrativa ou penal contra os direitos da criança e adolescente." E quando o menor se encontrar em situação de risco, o próprio estatuto determina medidas de proteção à criança ou adolescente, dentre outras, aquelas em que os direitos reconhecidos forem ameaçados ou violados por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável.(19)
Com tais parâmetros, levando-se em consideração a abominável conduta do pai, padrasto ou responsável pela menor, o médico, não só de acordo com sua obrigação funcional, mas para tutelar também o direito sexual e de reprodução da menor, deverá, obrigatoriamente, conforme preconiza a Lei 10.778, de 24/11/03, fazer a notificação compulsória da ocorrência do ilícito. Se, conforme determina o Código de Processo Penal, "qualquer pessoa do povo", especificando uma legitimidade ampla e irrestrita, pode levar ao conhecimento da autoridade policial ou ao Ministério Público a existência de infração penal que tiver conhecimento, com maior razão ainda o médico no exercício do serviço público de saúde, terá a obrigatoriedade de fazer a comunicação, narrando, inclusive, fatos que sejam necessários para o início da atividade investigativa.
O profissional da saúde, nem sempre bem informado a respeito dos procedimentos legais, pode, de forma inconsciente, sem ter dado azo a tanto, responder administrativa e criminalmente por uma conduta omissiva de relevância social. Apoiar-se no desconhecimento da lei não é medida escusável, já que "ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece".(20)
_______________
(1) Diniz MH. O estado atual do biodireito. 3. Ed. São Paulo. Ed. Saraiva, 2006, p.60.
(2) Mirabete, JF. Manual de direito penal, volume 2, 25ª ed. São Paulo: 2007, Atlas, p.68.
(3) Capez, Fernando. Código penal comentado/ Fernando Capez, Stela Prado. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007, p. 234.
(4) Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de direito penal:parte especial, vol. 2, 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 168.
(5) Pierangeli, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro : parte especial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 120.
(6) Puig, S. Mir. Introducción a las bases del derecho penal. Barcelona: Bosch, 1976, p. 154.
(7) Toledo, Francisco de Assis. Princípios básicos do direito penal, 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 131/132.
(8) Teles, Ney Moura. Direito penal: parte especial. São Paulo: Atlas, 2004, p.183.
(9) Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 244.
(10) Dentre outros documentos assinados pelo Brasil no campo da saúde e da autodeterminação sexual e reprodutiva, destacam-se: Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, realizada em Viena, 1993, Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, Cairo, 1994 e 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher, em Beijing, 1995.

(11) Dentre outros, o direito à igualdade, da dignidade humana, do planejamento familiar.
(12) Referidos documentos são apresentados na Série sobre Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, de responsabilidade do Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas do Ministério.
(13) Tourinho Filho, Fernando da Costa. Processo penal, volume 1, 25 ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 433.
(14) Jardim, Afrânio Silva. Ação penal pública: princípio da obrigatoriedade. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 48.
(15) Código de Ética Médica, Resolução do CFM nº 1.246, de 08. 01.1988, artigo 102
(16) Artigo 154 do Código Penal.
(17) É a regra da descriminante putativa prevista no § 1º do art. 20 do Código Penal.
(18) Código de Ética Médica, artigo 103.
(19) Artigo 98, inciso II do ECA.
(20) Art. 3.º da Lei de Introdução ao Código Civil.
*Advogado, Promotor de Justiça aposentado e Reitor da Unorp
Fonte: Migalhas

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