domingo, 5 de abril de 2009

O cuidado que se deve ter ao escrever


por Luiz Costa Pereira Junior
Clareza pode ser questão de Justiça. Que o diga o pedreiro Gleison Lopes de Oliveira, solto por erro na interpretação de frase confusa, após ser preso pela morte do empresário Nelson Schincariol, em Itu (SP).
Gleison foi acusado de integrar a quadrilha que cometeu o crime, em agosto de 2003. Um desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo recusara habeas corpus para o réu, mas comunicou a decisão num texto tão pouco claro que o juiz de Itu, José Fernando Azevedo Minhoto, entendeu o oposto e mandou soltar Gleison em 17 de abril de 2004. Quando, 11 dias depois, a ordem foi revogada, o pedreiro já chispara do pedaço.
Ele foi recapturado, e sua sorte com habeas corpus já não seria igual. No fim do ano, o Supremo Tribunal Federal negou novo pedido para que ele responda à acusação em liberdade. Cabe recurso, mas é improvável que a Justiça repita um deslize como o da frase de 17 linhas, que aceitava o pedido da defesa de anular depoimentos, mas rejeitava o da liberdade provisória do pedreiro.
A confusão veio com o fim da oração: "deferindo liberdade provisória ao paciente", lida pelo juiz como frase autônoma, e não como complemento de raciocínio anterior. O caso virou símbolo do estrago que uma redação confusa provoca na interação humana. Clareza é a qualidade de uma mensagem que não deixa dúvidas razoáveis sobre seu sentido. Uma frase como "O pai o filho adora" nos lança uma sombra interpretativa, difícil de dissolver sem explicação adicional (o filho adora o pai ou o inverso?). A falta de clareza entrava a Justiça, alonga reuniões, rouba tempo, faz contratos distorcerem direitos, beneficia quem não deve, prejudica quem não merece.
Clareza prévia
Uma frase perde clareza por muitos fatores: desde a má ordenação das idéias à pontuação inadequada. Ser claro requer esforço. E seguir conselhos, que não são tudo. A linguística textual mostrou que sentidos se formam no conjunto da enunciação e dos significados configurados na memória. Há clareza a ser cultivada antes até do primeiro esboço. "Clareza prévia" é saber que, na prática, um leitor também "lê" com a memória. Ao fim da leitura, é improvável que se tenha um texto inteiro na mente, palavra por palavra. Tendemos a fazer pausas para que nossa memória de curto prazo forme um resumo do que foi lido até ali. É com essa síntese mental que continuamos a leitura.
Com excesso de incisos e elementos intercalados, o leitor terá dificuldade de saber seu momento de fazer a pausa vital a seu resumo. É preciso atenção a tudo que atrapalhe a síntese mental. Alguns obstáculos são semânticos: termos raros, gíria e formulações desconhecidas ou pouco acessíveis.
Outros são sintáticos:
- Apostos desarticuladores;
- Frágil progressão de tópicos;
- Acúmulo de ideias na frase;
- Anacolutos (começar falando uma coisa, encerrar com outra: "O advogado que não escreve o que diz, não é difícil prever situações de conflito no tribunal");
- Hipérbatos (troca da ordem direta dos termos da oração): "Aguenta a escola pública da privada uma concorrência desleal" (melhor seria: "A escola pública aguenta uma concorrência desleal da privada").
Outra preocupação prévia é a busca pela informação compartilhada pelo leitor. Quem nos lê ou escuta não tem obrigação de intuir o que sabemos e pensamos. Pior: erros de clareza com a mídia são mais difíceis de contornar do que evitar.
Justiça
Mas até quando há fim utilitário, um texto pode não ser claro de propósito. A ambiguidade pode vir da má fé. Jeanlise Velloso Couto, da Secretaria do Centro de Arbitragem da Ancham (Câmara Americana de Comércio), viveu na pele o impacto de um texto truncado. Há uns anos, seu pai assinou um seguro de vida acreditando proteger a família. Mas a apólice esgrimou expressões como "beneficiário" e "segurado" e o fez entender que beneficiaria sua mulher, mas invertia os papéis: ela era a titular, ele o beneficiado. O engano só foi notado após a morte do pai de Jeanlise. - Erros de clareza são perigosos. Podem ser a diferença entre o acesso a um direito ou sua perda - diz ela.
A falta de clareza vira falácia argumentativa quando uma definição é tão complicada quanto o termo a definir. Em "Catalisar é provocar processos enzimáticos", a definição de "catalisar" não é explicada por "processos enzimáticos". Construções assim, em contratos, apólices e decisões judiciais, minam direitos. Para o advogado Iberê Bandeira de Mello, ex-membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB, excessos de linguagem e falta de cultura levam a confundir prolixidade, o falar demais, com conhecimento.
- Decisões judiciais são em geral prolixas, por vezes omissas, quando deixam de manifestar-se sobre o que se pediu. Mas nem sempre confusas. A falta de clareza está na forma que usam ao omitir o principal - diz.
O advogado vê falta de clareza na recente divulgação da decisão do STF, pela qual o réu só será preso se condenado ao fim do processo. - Como regra geral, o réu deve ser solto. Mas isso não anula a prisão liminar ou preventiva, por exemplo. Isso não foi dito. Só ficou a sensação de que agora pode tudo - afirma.
Paulo Fernando Campos Salles de Toledo, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça-SP e professor da Faculdade de Direito da USP, acredita que, no Direito, podemos ser vítimas da falta de clareza em três órbitas:
1) Na confecção da norma. Quando a lei dá margem a interpretações controversas.
2) Nas decisões. Há um recurso, "embargo de declaração", só para sanar obscuridades em sentenças.
3) Na petição. Quando o advogado não sabe ser mais claro do que foi. É o mais frequente, diz Toledo.
Um texto truncado pode ser, no fundo, sinal de falta de sinceridade. Ser claro é expor-se à avaliação alheia. Há quem escreva truncado como se usasse um escudo que, protetor, também o camufla. Nesses casos, o problema é antes de divã, ou de caráter, do que de redação. A maioria, no entanto, patina por falta de familiaridade com o idioma. Aí não há jeito: é preciso pôr-se no papel de leitor, até que se lapide um sentido cristalino. Mais revisão, maior fluência. Mas dá um trabalho danado.
Dicas:
- Tenha em mente o projeto de texto que você se propõe.
- Confira se o texto flui ponto a ponto.
- Verifique se afirmações se antecipam a eventuais indagações do leitor.
- Corte o que for irrelevante.
- Não omita informações; não exagere nos detalhes.
- Não insista em fatos de que o leitor já disponha.
- Melhor dispor de forma linear os elementos da frase.
- Não se desvie do assunto.
- Veja se os trechos não devem ser distribuídos noutro ponto do texto.
- Não repita conectores, com muitos "que" para iniciar explicações ou restrições a termos já expostos.
Trechos obtidos do texto original: "A comunicação truncada atrapalha a Justiça, os negócios e o cotidiano; conheça as técnicas para textos precisos, ordenados e compreensíveis". (Uma contribuição enviada pelo amigo e professor de Direito Civil - Vicente da Cunha Passos Júnior).

Um comentário:

O CLARO disse...

Cara Dra. Karina Merlo, tudo bem?

Tive a honra de conhecer o trabalho do Porfessor, Escritor e Jurista Doutor Geraldo Prado quando era eu um simples advogado no Rio de Janeiro.
Em vinte e seis anos de advocacia vi muita coisa acontecer que somente DEUS não duvida.rsrs
Tenho o hábito de dizer que aquele que é prolixo corre o sério risco de escrever pro lixo.
Adorei seu espaço jurídico de grande e qualificado conteúdo onde a toda evidência aprenderei com os melhores e sairei do ostracismo.
Saudações fraternas,
Fernando Claro