segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Princípio da Insignificância: insignificante para a vítima?


São 23:20 horas da noite. Há exatamente uma hora atrás eu fui vítima de um furto relâmpago em pleno semáforo. Furto qualificado (subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: com destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa).

Parece até que eu sabia o que ia acontecer pois, a princípio, pensei em invadir o sinal para não "dar bobeira" a uma dessas surpresas. Infelizmente, um carro parou à minha frente, um ônibus ao meu lado, e outro carro atrás... enfim: todos pararam.

Vi quando dois sujeitos, aparentemente adolescentes, se aproximaram como se fossem pedintes. Dei sinal negativo com a mão como se nada eu pudesse ter para oferecer-lhe (até porque não tinha). Bolsa preta no chão, banco de trás (invisível). Na frente, só uma pasta que continha caderno, estojo com canetas e o meu sagrado MP3 com minhas aulas. Foi quando ouvi os barulhos: o rapaz que parecia inofensivo golpeava violentamente o vidro do carona com uma pedra. Como eu tinha colocado uma película que evitasse que o vidro estilhaçasse - talvez prevendo que eu fosse ser, algum dia, uma das vítimas desse tipo de crime - o meliante impôs todas as forças várias vezes para golpear a janela que já cedia ao abrir do sinal. Arranquei. Mas ele já tinha subtraido a minha pasta... com livros! É incompreensível que alguém invista tanta violência para, no meu caso, subtrair uma pasta escolar.

Agora, que calmamente escrevo, fico imaginando a cara desanimadora desse meliante ao abrir a pasta. Bem, tem o meu número de celular no Vade Mecum e no caderno. É bem provável que ele ainda me ligue - não para pedir desculpas, claro. Para fazer algum tipo de ameaça pela frustração do seu crime.

No meu relato em rodapé aqui no blog, expresso a minha decisão de ser operadora do Direito. Na verdade, o meu compromisso ao entrar no curso de Direito foi para atender aos pré-requisitos de minha intenção maior: ser juiza criminal.

Conhecida pelo meu lado garantista, e até muito criticada, veio-me à memória as inúmeras decisões com aplicação do Princípio da Insignificância que eu apoiei e defendi. Enquanto meus colegas ainda defendem a pena de morte, a tortura, o tratamento não digno aos presos, eu vou sendo criticada pela defesa dos que não tiveram alguma oportunidade para ser alguém.

Diante dessa experiência inevitável que passei, apesar de não ter um policial por perto, vamos à uma reflexão de Direito Penal: consideremos que esse indivíduo fosse preso em flagrante; convenhamos, diante da jurisprudência que cada vez mais se consolida, ele iria responder por furto qualificado (art. 155, § 4º, I). A pasta e o seu conteúdo não ultrapassariam o valor de R$250,00. E, certamente, o meliante ficaria livre após a aplicação do Princípio da Insignificância. Não seriam levados em conta os meus pequenos cortes e o valor da minha nova janela. Nem estou levando em consideração algum tipo de trauma, afinal, espero a ocorrência desse tipo de crime todos os dias quando saio da faculdade para casa. Todavia, o meliante estaria livre pela incidência de um forte princípio geral do Direito.

Tenho que mudar a minha forma de ver o crime? Torna-me-ei, futuramente, um magistrado radical?

É nesse momento que o lado religioso fala mais alto. Não penso, francamente, em perdão, e nem posso: perdoamos, mas não esquecemos. E a minha máxima religiosa predileta é: Deus perdoa porque é bom; mas pune, porque é justo. É Ele quem me acompanha e, em minha fé, acredito que esses infortúnios não fazem parte da sua obra, e sim à do "malígno". Eu acredito em um Deus bom e justo.

Divido com vocês a minha mágoa pelo que aconteceu, entretanto também comungo do meu desejo de não contaminar a minha capacidade de julgamento por essa lastimável experiência pessoal. Confesso que será mais difícil ter piedade quando esses casos "insignificantes" chegarem à minha mesa para serem julgados. E peço a Deus, humildemente, que eu não seja injusta... com a vítima.

Karina Merlo

3 comentários:

Aldo disse...

Ontem eu estava num táxi em SP. De repente, um policial abriu a porta do carro e ordenou ao motorista que seguisse um bandido que corria em desabalada carreira. O táxi saiu correndo feito louco, driblando carros e pedestres. Duzentos metros à frente, alcançamos o meliante. O PM apontou a arma, o bandido hesitou um pouco e correu. O PM fez a visada, mas não atirou. Saiu correndo atrás do bandido e não sei o fim da história. Eu não sou garantista, não. Esse sacana tem que ser preso e sofrer pelo mal que causou. Pena de morte já!

Marcia de Sousa Rodrigues Almeida disse...

Karina,

Conforme aqui postado, o agente empregou demasiada violência para subtrair apenas uma pasta escolar. Posto isto, é sabido que a violência na conduta descaracterizou a insignificância.

Aplica-se o princípio da insignificância em crimes de bagatela, que é um crime de menor conteúdo ofensivo; crime de ínfima relevância penal, seja por haver desvalor na conduta do agente, seja por haver desvalor no resultado.

Ao romper um obstáculo - quebrar o vidro do carro; bem como utilizar arma de fogo em via pública para subtrair objeto de dentro de um veículo, o agente está sendo mais audaz, violento, causa maiores danos e submete uma esfera maior à perigo.

Portanto, ao meu ver, de acordo com o relatado, falar em princípio da insignificância é incorreto, pois não se pode analisar apenas o valor subtraído para a aplicação de tal princípio. Deve-se analisar todo o caso concreto.

É imperioso analisar a conduta do agente, a complexidade do crime, e não só o valor subtraído; visto que houve a subtração da coisa e ainda um dano ao veículo. Deve-se analisar até se o agente não é reincidente em crimes que podem configurar a bagatela.

Como garantista, você deveria continuar no apoio e defesa do princípio da insignificância.
Mudar a forma de ver o crime? Talvez. Uma magistrada radical? Eu acredito no Direito e na Justiça.

Vide Direito por Marcia Rodrigues: http://www.marciarodrigues.blog.br/

Karina Merlo disse...

Marcia,

Excelente comentário. Infelizmente a matéria não é pacífica:

"Trata-se de furto qualificado com destruição de obstáculo para subtração de res furtiva, pois o paciente quebrou o vidro do carro para furtar um guarda-chuva e uma chave de roda. O habeas corpus objetiva absolver o paciente, sustentando que a conduta atribuída é materialmente atípica pela aplicação do princípio da insignificância. Nessa circunstância, explica o Min. Relator, a questão suscita polêmica no que se refere aos limites e às características do princípio da insignificância, que se caracteriza como causa supra legal de atipia penal. Então, a questão está em saber se o objeto pretendido no furto, ao ser este consumado, estaria caracterizando um ilícito penal, um ilícito extra-penal ou algo até juridicamente indiferente. Aponta, citando a doutrina, que, se, por um lado, na moderna dogmática jurídico-penal, não se pode negar a relevância desse princípio; por outro, ele não pode ser manejado de forma a incentivar condutas atentatórias que, toleradas pelo Estado, afetariam seriamente a vida coletiva. Dessa forma, observa que no furto, para efeito de aplicação do princípio da insignificância, é imprescindível a distinção entre o ínfimo (ninharia desprezível) e o pequeno valor. Este último implica eventualmente o furto privilegiado (art. 155, § 2º, do CP), e aquele primeiro, na atipia conglobante (dada a mínima gravidade). A interpretação de insignificância deve necessariamente considerar o bem jurídico tutelado e o tipo de injusto para sua aplicação. Daí, ainda que se considere o delito como de pouca gravidade e esse delito não se identifica com o indiferente penal se, como um todo, observado o binômio o tipo de injusto e o bem jurídico, ele deixa de caracterizar a sua insignificância. Assevera que esse é o caso dos autos, o valor da res furtivaé insignificante, um delito de bagatela (guarda-chuva e chave de roda), entretanto a vítima teve de desembolsar a quantia de R$ 333,00 para recolocar o vidro quebrado, logo o valor total do prejuízo causado pelo paciente não é insignificante. Diante do espostoexposto, como não é o caso de reconhecer a irrelevância penal da conduta, a Turma denegou a ordem de habeas corpus. HC 136.297-MG, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 6/10/2009."

"A destruição ou avaria de automóvel para a subtração de objeto que se encontra em seu interior faz incidir a qualificadora prevista no art. 155, § 4º, I, do CP (“Art. 155 – Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa. … § 4º – A pena é de reclusão de dois a oito anos, e multa, se o crime é cometido: I – com destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa;”). Com fundamento nessa orientação, a Turma indeferiu habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública da União em favor de condenado pela prática do delito de furto qualificado em virtude de rompimento de obstáculo (CP, art. 155, § 4º, I), no qual se pleiteava o afastamento dessa majorante. Aduziu-se que, tendo o paciente utilizado de violência contra empecilho o qual dificultava a subtração dos objetos do veículo, deveria incidir a mencionada qualificadora.
HC 98406/RS, rel. Min. Ellen Gracie, 16.6.2009. (HC-98406)"

O risco da incidência do Princípio da Insignificância é grande. Foi isso que tentei explicar.

Na paz.

Karina Merlo