terça-feira, 2 de março de 2010

Artigo: Competência e Devido Processo Legal


por Ada Pellegrini Grinover*

RESUMO: A determinação da competência leva em conta os fatos e fundamentos que servem de base à demanda. Tais fatos, colhidos na relação de direito material, integram a causa de pedir e, nessa medida, são critérios determinantes da competência. Eles devem necessariamente ser considerados tais como postos na petição inicial, sendo vedado ao órgão judicial, para aferição da competência, fazer incursão mais aprofundada sobre tal objeto, sob pena de julgar prematura e indevidamente o mérito da causa. Ora, se é verdade que a aferição da competência, por parte do órgão judicial, deve ser feita à luz da assertiva feita pelo demandante na petição inicial; e, mais do que isso, se é vedado ao órgão judicial, a pretexto de definir a competência, enveredar pelo mérito da causa, tratando de questões que são pertinentes a essa última categoria; então a conclusão inexorável a que se chega é a de que (a) para determinação da competência não pode o órgão judicial adentrar o exame do mérito e (b) o julgamento do mérito não pode ser feito de forma prematura, em cognição somente compatível com a determinação da competência. Sob qualquer um desses dois ângulos (na verdade, dois lados de uma mesma moeda), o emprego de inadequada cognição vulnera a garantia constitucional do devido processo legal.

PALAVRAS-CHAVE: Competência. Mérito. Direitos e Garantias Individuais. Princípio do Juiz Natural. Devido Processo Legal.

1 Competência: Determinação a Partir de Elementos Contidos na Relação Material

Conforme já tivemos oportunidade de observar no âmbito doutrinário, "a função jurisdicional, que é uma só e atribuída abstratamente a todos os órgãos integrantes do Poder Judiciário, passa por um processo gradativo de concretização, até chegar-se à determinação do juiz competente para determinado processo". Daí porque, lembrando a lição de Celso Neves, observamos que "há uma relação de adequação legítima entre o processo e o órgão jurisdicional" 1.

Como igualmente observamos, para fazer a distribuição dos processos aos diferentes órgãos integrantes do Poder Judiciário procede o legislador mediante operação lógica que, dentre outros fatores, considera uma "elaboração da massa de causas em grupos", levando em conta "certas características da própria causa e do processo mediante o qual ela é apreciada pelo órgão judiciário" 2 (grifei).

Dessa forma, lembramos então que toda causa tem "uma série de elementos essenciais que a identificam e diferenciam das demais", e que se traduzem nos elementos da ação: partes, pedido e causa de pedir. Particularmente em relação a esta última, destacam-se "os fatos, dos quais, segundo a exposição do demandante, decorre o direito que afirma ter" e "os fundamentos jurídicos, ou seja, as regras de direito pertinentes ao caso e das quais o demandante extrai sua conclusão" 3.

Na lição de Calamandrei, a competência se determina não em abstrato, mas em função "da relação substancial (cidadania das partes, seu domicílio, valor econômico da causa etc.) sobre a qual o juiz é chamado a prover" 4. Ou, na lição de Chiovenda, "reservam-se algumas controvérsias exclusivamente a determinados juízes, agora pela natureza especial da relação jurídica em controvérsia, agora para facilitar a conciliação ou por outras razões" 5.

Nessa mesma linha, dissemos também que, no tocante aos fatos e aos fundamentos jurídicos que integram a causa de pedir, leva-se em conta, dentre outros fatores, "a natureza da relação jurídica controvertida, ou seja, o setor do direito material em que tem fundamento a pretensão do autor da demanda". Mais ainda, também considerando elementos colhidos na relação material, o lugar ou território pode ser relevante 6.

Portanto, destas primeiras considerações, extrai-se que a determinação da competência leva em conta, sem dúvida, os fatos e fundamentos que servem de base à demanda. Tais fatos, colhidos na relação de direito material, integram a causa de pedir e, nessa medida, são critérios determinantes da competência.

2 Competência: Aferição a Partir dos Fatos Afirmados pelo Demandante

Se é certo, por um lado, que os fatos e fundamentos jurídicos colhidos no plano substancial do ordenamento são relevantes para a determinação da competência, não menos certo é que, para essa finalidade específica e particular, os fatos devem necessariamente ser considerados tais como postos na petição inicial, sendo vedado ao órgão judicial, para aferição da competência, fazer incursão mais aprofundada sobre tal objeto, sob pena, como se verá, de julgar prematura e indevidamente o mérito da causa.

Consoante precisa lição de Cândido Rangel Dinamarco, "a determinação da competência faz-se sempre a partir do modo como a demanda foi concretamente concebida – quer se trate de impor critérios colhidos nos elementos da demanda (partes, causa de pedir, pedido), quer relacionados com o processo (tutelas diferenciadas: mandado de segurança, processos dos juizados especiais cíveis etc.), quer se esteja na busca do órgão competente originariamente ou para os recursos". Sendo assim, destacou Dinamarco, "não importa se o demandante postulou adequadamente ou não, se indicou para figurar como réu a pessoa adequada ou não (parte legítima ou ilegítima), se poderia ou deveria ter pedido coisa diferente da que pediu etc.". E conclui:

"Questões como essas não influem na determinação da competência e, se algum erro dessa ordem houver sido cometido, a consequência jurídica será outra e não a incompetência. Esta afere-se invariavelmente pela natureza do processo concretamente instaurado e pelos elementos da demanda proposta, in status assertionis." 7 (grifei)

Nessa mesma linha de raciocínio, José Carlos Barbosa Moreira, a propósito do tema, observou que "no exame da preliminar [relativa à competência], o órgão judicial há de ter em vista as características da causa ou do recurso tais como na realidade se lhe deparam, e não como, em seu entendimento, deveriam ser. É uma consequência direta da prioridade que se reconhece a essa preliminar: se ela tem de ser resolvida antes de qualquer outra, fica evidente que sua solução não pode subordinar-se à de qualquer outra" 8. E mais:

"Para o conflito de competência (ou de ‘jurisdição’) valem, mutatis mutandis, as considerações acima. O órgão julgador somente se pronunciará sobre a competência na medida em que se houver suscitado o conflito: essa é a medida de sua cognição, no mérito." 9 (grifei)

Ainda na doutrina nacional, colhe-se a lição de Arruda Alvim que, como Barbosa Moreira, destacou a antecedência lógica do exame quanto à competência, bem como os limites do órgão judicial ao fazê-lo. Assim, lembrou o processualista que "a competência é a jurisdição para o caso específico, ou, por outras palavras, a concretização do poder jurisdicional num dado órgão, cujo juiz tem poder para processar a causa e julgá-la (art. 86). É ela, pois, um requisito que diz respeito a um dos elementos do processo: ao órgão ocupado pelo juiz" 10. E mais:

"Seja qual for a posição que se tome a respeito das questões de admissibilidade de julgamento de mérito, o que é importante observar é que ‘a questão de mérito’ é geralmente a ‘questão principal’ e quase sempre a última a ser decidida." 11 (grifei)

Por isso é que, com acerto, Nelson Nery Junior observou que "antes de ser afirmada e confirmada a competência e a imparcialidade do juiz para julgar determinada causa, não pode o magistrado ingressar no exame de questões processuais ou de mérito, sob pena de violar-se a garantia constitucional do juiz natural" 12 (grifei). Assim também José Roberto dos Santos Bedaque, com amplas referências jurisprudenciais:

"No que se refere à competência, sua análise deve ser feita ‘em face dos termos em que a demanda está posta pela inicial’ (AI 12.529-0, TJSP, Cam. Esp., Rel. Des. Sylvio do Amaral, j. 09.05.91; no mesmo sentido, AI 14.976-0, Diadema, Rel. Des. Lair Loureiro, j. 16.07.92; AI 14.953-0-SP, Rel. Des. Sabino Neto, j. 26.06.92; AI 14.813-0, São Manoel, Rel. Des. Yussef Cahali, j. 11.06.92; C.C. 14.759-0-SP, Rel. Des. Cunha Camargo, j. 21.05.92; C.C. 14.056-0-SP, Rel. Des. Garrigós Vinhaes, j. 16.01.92; C.C. 13.705-0-SP, Rel. Des. Sylvio do Amaral, j. 07.11.91; 13.638-0-SP, Rel. Des. Sabino Neto, j. 10.10.91; 13.628-0-SP, Rel. Des. Odyr Porto, j. 24.10.91; C.C. 13.487-0-SP, Rel. Des. Cesar de Moraes, j. 26.09.91; C.C. 13.427-0-SP, Rel. Des. Torres de Carvalho, j. 03.10.91)." 13 (grifei)

São julgados indicados por Bedaque:

"Como esta Câmara tem reiterado – e o parecer da d. Procuradoria colecionou inúmeros acórdãos – a análise da competência deve ser feita ‘em face dos termos em que a demanda está proposta na inicial’." (TJSP, AI 17.369-0/2, Rel. Des. Renato Torres de Carvalho Filho, j. 22.07.93)

"Se o agravante tem ou não legitimidade para responder a todas as pretensões, a matéria é de ser discutida em outra oportunidade; no que se refere à competência, sua análise deve ser feita em face dos termos em que a demanda está posta na inicial, segundo reiterada jurisprudência." (TJSP, AI 17.349-0/1, Rel. Des. Yussef Cahali, j. 29.04.93)

"Como bem demonstrou o Dr. Procurador de Justiça, com remissão a vários precedentes jurisprudenciais da e. Câmara Especial, o contencioso específico da competência, instaurado por via de exceção, não autoriza a apreciação do mérito da demanda. Isso porque a análise da competência deve ser feita face aos termos em que a demanda foi posta na inicial." (TJSP, AI 17.372-0/6, Rel. Des. Cesar de Moraes, j. 04.03.93; grifamos).

Da doutrina e da jurisprudência nacionais não discrepa a doutrina estrangeira. Entre os alemães, Adolfo Shönke observou que: "Las cuestiones de competencia no deben diferir el debate y resolución sobre el fondo mas que en lo estrictamente necesario" 14.

Dentre os italianos, já Calamandrei lembrou que as questões relativas à competência são consideradas pela lei como questões prejudiciais atinentes ao processo e "distintas das questões de mérito". Assim, a decisão acerca dessas questões serve para estabelecer se o juiz tem poderes suficientes para adentrar o mérito. Daí porque, como entre nós disse Barbosa Moreira, tal resolução deve vir logicamente antes que se possa passar ao exame e decisão acerca das questões de mérito 15 (grifei).

Na doutrina mais recente, Andrea Proto Pisani escreveu:

"Il testo originario del codice non contemplava alcuna norma de carattere generale idonea a risolvere situazioni di questo tipo. Dottrina e giurisprudenza avevano però generalizzato il principio contenuto nell’art. 14, 2º comma, in base al quale le questioni di competenza (per valore delle cause relative a somme di denaro o a beni mobili) si risolvono allo stato degli atti, senza apposita instruzione, sulla base di una cognizione superficiale che non pregiudica la decisione di merito: in forza di questo principio le pronunce sulla competenza non possono mai pregiudicare la decisione di merito della controversia, ancorché la risoluzione della questione di competenza sia dipesa da accertamenti di fatto o da qualificazioni giuridiche rilevanti anche ai fini della decisione di merito." 16 (grifei)

Mesmo em relação à competência determinada pelo critério da matéria, Proto Pisani observou que, em tais casos:

"Secondo l’orientamento assolutamente prevalente in dottrina e giurisprudenza, la competenza si determinerebbe alla stregua del rapporto cosi come affermato dall’attore ed al giudice residuerebbe in punto di competenza un controllo limitato solo alla verifica della correttezza – in iure – della qualificazione giuridica del rapporto sulla base dei fatti cosi come affermati dall’attore; ove poi, al termine del processo, dovesse risultare l’inesistenza del rapporto affermato dall’attore e l’esistenza invece di altro rapporto che fuoriesce dalla competenza, non solo per materia ma anche per valore, del giudice adito, questi dovrebbe limitarsi a rigettare nel merito la domanda." 17 (grifei)

Ainda dentre os autores italianos mais recentes, Francesco Luiso também observou que "prima devono essere accertati tutti i presupposti processuali e solo dopo avere accertato la loro sussistenza potrà essere affrontato il merito" 18. Assim também Andrea Lugo, para quem:

"Le norme che delimitano la giurisdizione, come quelle che delimitano la competenza, di cui si dirà nel capitolo successivo, debbono essere applicate nei singoli casi, per stabilire a quale giudice spetti di giudicare su uma determinata causa. L’applicazione di queste norme richiede l’accertamento della situazione di fatto, che forma oggetto della controversia, accertamento che il giudice deve compiere preliminarmente al solo fine di conoscere se egli abbia giurisdizione e competenza, esaminando il contenuto della domanda, senza indagare sul suo fondamento." 19 (grifei)

De todo o exposto, confirma-se que, embora os fatos e fundamentos jurídicos colhidos no plano substancial do ordenamento sejam relevantes para a determinação da competência, tais fatos devem necessariamente ser considerados como postos na petição inicial, sendo vedado ao órgão judicial, para aferição da competência, fazer incursão mais aprofundada sobre tal objeto, sob pena, como se verá, de julgar prematura e indevidamente o mérito da causa.

3 Decisão Acerca da Competência, Prematuro Julgamento do Mérito e Garantias do Devido Processo Legal

Conforme mais uma vez escrevemos, entende-se pela fórmula acima mencionada "o conjunto de garantias constitucionais que, de um lado, asseguram às partes o exercício de suas faculdades e poderes processuais e, de outro, são indispensáveis ao correto exercício da jurisdição. Garantias que não servem apenas aos interesses das partes, como direitos públicos subjetivos (ou poderes ou faculdades processuais) destas, mas que configuram, antes de mais nada, a salvaguarda do próprio processo, objetivamente considerado como fator legitimante do exercício da jurisdição" 20.

O conteúdo da fórmula do devido processo legal vem, como dissemos, "desdobrado em um rico leque de garantias específicas", no qual, desde logo, está encartada "a dúplice garantia do juiz natural, não mais restrito à proibição de bills of attainder e juízos ou tribunais de exceção, mas abrangendo a dimensão do juiz competente (art. 5º, XXXVII e LIII)" 21 (grifei). Dessa forma, lembramos então que as modernas tendências sobre o princípio do juiz natural nele englobam a proibição de subtrair o juiz constitucionalmente competente; o que, entre outras coisas, desdobra-se na ideia de que:

"(...) entre os juízes pré-constituídos vigora uma ordem taxativa de competências que exclui qualquer alternativa deferida à discricionariedade de quem quer que seja. A Constituição Brasileira de 1988 reintroduziu a garantia do juiz competente no art. 5º, LIII." (grifei)

Ainda acerca do conteúdo da cláusula do devido processo legal, afirmamos que "a garantia do acesso à justiça, consagrando no plano constitucional o próprio direito de ação (como direito à prestação jurisdicional) e o direito de defesa (direito à adequada resistência às pretensões adversárias), tem como conteúdo o direito ao processo, com as garantias do devido processo legal". E mais:

"Por direito ao processo não se pode entender a simples ordenação de atos, através de um procedimento qualquer. O procedimento há de realizar-se em contraditório, cercando-se de todas as garantias necessárias para que as partes possam sustentar suas razões, produzir provas, influir sobre a formação do convencimento do juiz. E mais: para que esse procedimento, garantido pelo devido processo legal, legitime o exercício da função jurisdicional." 22 (grifei)

A propósito do tema, vêm bem a calhar as palavras de Cândido Dinamarco, no sentido de que:

"Garantido o ingresso em juízo e até mesmo a obtenção de um provimento final de mérito, é indispensável que o processo se haja feito com aquelas garantias mínimas: a) de meios, pela observância dos princípios e garantias estabelecidas; b) de resultados, mediante a oferta de julgamentos justos, ou seja, portadores de tutela jurisdicional a quem efetivamente tenha razão. Os meios, sendo adequadamente empregados, constituem o melhor caminho para chegar a bons resultados. E, como afinal o que importa são os resultados justos do processo (processo civil de resultados), nem se admite que se aventure a decidir a causa segundo seus próprios critérios de justiça, sem ter empregado os meios ditados pela Constituição e pela lei. Segundo a experiência multissecular expressa nas garantias constitucionais, é grande o risco de erro quando os meios adequados não são cumpridos." 23 (grifei)

Nesse contexto, o "direito ao processo" de que acima se falou, como integrante da garantia do devido processo legal, significa também direito à adequada cognição. Conforme felizes palavras de Kazuo Watanabe: "Para a ciência processual é relevante, também, o estudo do processo enquanto previsão da lei, vale dizer, no plano abstrato, e nesse sentido é ele procedimento qualificado pelo contraditório, nos termos da conceituação de Fazzalari, já mencionada. É através desse estudo que se pode avaliar se um determinado processo concebido pelo legislador, antes mesmo de sua realização em concreto, atende ou não todas as exigências da cláusula do ‘devido processo legal’, isto é, um processo ‘com procedimento adequado ao exame contraditório do litígio’, e não qualquer processo". E mais:

"O direito à cognição adequada à natureza da controvérsia faz parte, ao lado dos princípios do contraditório, da economia processual, da publicidade e de outros corolários, do conceito de ‘devido processo legal’, assegurado pelo art. 153, § 4º, da CF [referia-se, então, à CF/67]. ‘Devido processo legal’ é, em síntese, processo com procedimento adequado à realização plena de todos esses valores e princípios." 24

Ora, se é verdade – como é verdade – que a aferição da competência, por parte do órgão judicial, deve ser feita à luz da assertiva feita pelo demandante na petição inicial, e, mais do que isso, se é vedado – como é vedado – ao órgão judicial, a pretexto de definir a competência, enveredar pelo mérito da causa, tratando de questões que são pertinentes a essa última categoria; então a conclusão inexorável a que se chega é a de que (a) para determinação da competência não pode o órgão judicial adentrar o exame do mérito e (b) o julgamento do mérito não pode ser feito de forma prematura, em cognição somente compatível com a determinação da competência.

Sob qualquer um desses dois ângulos (na verdade, dois lados de uma mesma moeda), o emprego de inadequada cognição vulnera a garantia constitucional do devido processo legal, quer porque (I) a indevida invasão do mérito leva a distorcida determinação de competência, com ofensa àquela garantia e, dentro dela, à do juiz natural (abrangente do juiz competente) e (II) a indevida apreciação do mérito, a pretexto da determinação da competência, significa prematura apreciação de questões de mérito, que devem obrigatoriamente ficar reservadas para o momento próprio, com adequada cognição.

Com relação ao primeiro dos aspectos acima destacados ("I" supra), quando se aprecia – inclusive sob o ângulo dos fatos controvertidos – o mérito para determinar competência, frustram-se as regras constitucionais e legais a partir das quais se determina o juiz natural. Isso fica tanto mais evidente quando se trata de tribunal superior a quem constitucionalmente está, ao menos em princípio, reservada a missão de preservar o direito objetivo. Ainda que se trate de conflito de competência, em que não vigorariam os estritos limites contidos no art. 105, III, da CF, a limitação aí imposta ao tribunal superior resulta de que a questão que lhe está afeta é exclusivamente aquela relativa à competência, não ao mérito. Decidir-se mérito em conflito de competência é manifesta violação à garantia do juiz natural que, como visto, também se inscreve-se na garantia do devido processo legal.

Quanto ao outro aspecto destacado ("II" supra), diz o art. 5º, LIV, da CR, que "Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal": julgar o mérito ou resolver questões de mérito a pretexto de determinar competência é impor à parte privação de bem juridicamente tutelado de forma desautorizada pelo texto constitucional, porque não se pode entender como compatível com o devido processo legal a cognição empreendida para simples determinação de competência.

Sob outro ângulo, mas a reforçar o quanto dito, pode-se também dizer que o julgamento do mérito ou a resolução de questões de mérito quando se discute ainda e apenas o tema da competência representa violação à regra inserta no inciso XXXV do art. 5º da CF, na medida em que, pela inadequação da cognição que leva a prejulgamento indevido do mérito, o resultado, ainda que estabelecido de forma indireta, é a subtração de alegação de direito à devida apreciação judicial.

NOTAS

1 - Cf. Cintra; Grinover; Dinamarco. Teoria geral do processo. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 230-231.
2 - Cf. Op. e loc. cit.
3 - Cf. Op. cit., p. 234.
4 - Cf. Piero Calamandrei. Instituciones de derecho procesal civil. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-America, 1986. v. II. p. 95.
5 - Giuseppe Chiovenda. Instituições de direito processual civil. trad. J. Menegale. São Paulo: Saraiva, 1965. v. II. p. 178.
6 - Cf. Op. cit., p. 235.
7 - Cf. Cândido Rangel Dinamarco. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Malheiros, 2001. v. I. p. 417-8.
8 - Cf. José Carlos Barbosa Moreira. Temas de direito processual: quarta série. São Paulo: Saraiva, 1989. p.97.
9 - C. Op. cit., p. 103.
10 - Cf. José Manuel de Arruda Alvim. Manual de direito processual civil. 6. ed. São Paulo: RT. v. I. p. 238-239.
11 - Idem, p. 397.
12 - Cf. Nelso Nery Júnior. Princípios do processo civil na Constituição Federal. São Paulo: RT, 1997. p. 65-66.
13 - Cf. José Roberto Dos Santos Bedaque. Competência e suspeição: julgados e pareceres. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 129.
14 - Cf. Adolfo Schönke. Derecho procesal civil. trad. espanhola da 5. ed. alemã. Barcelona: Bosch, 1950. p. 133.
15 - Cf. Op. cit., p. 96.
16 - Cf. Andrea Proto Pisani. Lezioni di diritto processuale civile. Napoli, 1996. p. 308.
17 - Idem, p. 310.
18 - Francesco P. Luiso. Diritto processuale civile I: principi generali. Milano: Giuffrè, 1997. p. 106.
20 - Cf. Cintra; Grinover; Dinamarco. Op. cit., p. 82.
21 - Cf. Op. e loc. cit.
22 - Cf. Op. cit., p. 84.
23 - Idem, p. 245-246.
24 - Cf. Kazuo Watanabe. Da cognição no processo civil. São Paulo: RT, 1987. p. 38-39 e 93-94.

* Professora Titular de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Fonte: Editora Magister

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