por Fernando Capez*
Na antiga sistemática do Código Penal, os delitos de estupro e atentado violento ao pudor eram reputados crimes distintos, previstos em tipos autônomos. Assim, havia dois crimes, sem a possibilidade de aplicação do benefício do crime continuado, dada a diversidade de espécies entre os dois delitos. Esse era o entendimento majoritário dos Tribunais Superiores.
Nesse sentido: STF, 1ª Turma, HC 74.630-MG, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJU, 7-3-1997; STJ, REsp 17.857-SP, 5ª Turma, Rel. Min. Cid Flaquer Scartezzini, DJU, 17-8-1992, p. 12507. No mesmo sentido: "Embora do mesmo gênero, os crimes de estupro e atentado violento ao pudor não são da mesma espécie, o que afasta a continuidade e corporifica o concurso material. ‘Habeas Corpus’ conhecido; pedido indeferido" (STJ, 5ª Turma, HC 10.162, Rel. Min. Edson Vidigal, j. 2-9-1999, DJ, 27-9-1999, p. 106).
Com o advento da Lei n. 12.015/2009, o crime de estupro passou a abarcar também os atos libidinosos diversos da conjunção carnal, de forma que, a partir de agora, será possível sustentar a continuidade delitiva em tais casos. Desse modo, se o agente, por diversas ocasiões, constranger a vítima, mediante o emprego de violência ou grave ameaça, a com ele praticar conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso diverso do coito vagínico, há continuidade delitiva (CP, art. 71). Nesse sentido, tem decidido o STF:
"Estupro e atentado violento ao pudor. Mesmas circunstâncias de tempo, modo e local. Crimes da mesma espécie. Continuidade delitiva. Reconhecimento. Possibilidade. Superveniência da Lei nº 12.015/09. Retroatividade da lei penal mais benéfica. Art. 5º, XL, da Constituição Federal. HC concedido. Concessão de ordem de ofício para fins de progressão de regime. A edição da Lei nº 12.015/09 torna possível o reconhecimento da continuidade delitiva dos antigos delitos de estupro e atentado violento ao pudor, quando praticados nas mesmas circunstâncias de tempo, modo e local e contra a mesma vítima". (STF, 2ª Turma, HC 86110/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 02/03/2010, DJe 23/04/2010. No mesmo sentido: STF, 2ª Turma, HC 99265/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 02/03/2010, DJe 23/04/2010 ; e 1ª Turma, HC 102355/SP, Rel. Min. Ayres Britto, j. 04/05/2010, DJe 28/05/2010.)
Contrariamente a esse entendimento, a 5ª Turma do STJ manteve posicionamento no sentido de que, mesmo diante da nova lei, é impossível reconhecer-se a continuidade delitiva entre as condutas que tipificavam o estupro e o atentado violento ao pudor, hoje previstas apenas como estupro, posto que segundo o Ministro Felix Fischer, constranger alguém à conjunção carnal não será o mesmo que constranger à prática de outro ato libidinoso de penetração, como o sexo oral ou anal. Segundo ainda a interpretação da Turma Julgadora, mesmo inseridas dentro de um mesmo tipo penal, estaríamos diante de um tipo misto cumulativo, cujo modo de execução das condutas seria distinto:
"Trata-se, entre outras questões, de saber se, com o advento da Lei n. 12.015/2009, há continuidade delitiva entre os atos previstos antes separadamente nos tipos de estupro (art. 213 do CP) e atentado violento ao pudor (art. 214 do mesmo codex), agora reunidos em uma única figura típica (arts. 213 e 217-A daquele código). Assim, entendeu o Min. Relator que primeiramente se deveria distinguir a natureza do novo tipo legal, se ele seria um tipo misto alternativo ou um tipo misto cumulativo. Asseverou que, na espécie, estaria caracterizado um tipo misto cumulativo quanto aos atos de penetração, ou seja, dois tipos legais estão contidos em uma única descrição típica. Logo, constranger alguém à conjunção carnal não será o mesmo que constranger à prática de outro ato libidinoso de penetração (sexo oral ou anal, por exemplo). Seria inadmissível reconhecer a fungibilidade (característica dos tipos mistos alternativos) entre diversas formas de penetração. A fungibilidade poderá ocorrer entre os demais atos libidinosos que não a penetração, a depender do caso concreto. Afirmou ainda que, conforme a nova redação do tipo, o agente poderá praticar a conjunção carnal ou outros atos libidinosos. Dessa forma, se praticar, por mais de uma vez, cópula vaginal, a depender do preenchimento dos requisitos do art. 71 ou do art. 71, parágrafo único, do CP, poderá, eventualmente, configurar-se continuidade. Ou então, se constranger vítima a mais de uma penetração (por exemplo, sexo anal duas vezes), de igual modo, poderá ser beneficiado com a pena do crime continuado. Contudo, se pratica uma penetração vaginal e outra anal, nesse caso, jamais será possível a caracterização de continuidade, assim como sucedia com o regramento anterior. É que a execução de uma forma nunca será similar à de outra, são condutas distintas. Com esse entendimento, a Turma, ao prosseguir o julgamento, por maioria, afastou a possibilidade de continuidade delitiva entre o delito de estupro em relação ao atentado violento ao pudor." (STJ, HC 104.724-MS, Rel. originário Min. Jorge Mussi, Rel. para acórdão Min. Felix Fischer, julgado em 22/6/2010)
* Fernando Capez é Mestre e Doutor em Direito; Presidente da CCJ da ALESP; Conselheiro Editorial da Revista Magister de Direito Penal e Processual Penal.
Fonte: Editora Magister
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