quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Incineração de processos arquivados é um equívoco

por Vladimir Passos de Freitas

Os processos nascem, vivem e morrem. Como nós, seres humanos. E também, como nós, tiveram a existência prolongada. Nós, pela evolução da medicina. Eles, pelo sistema judicial introduzido pela Constituição de 1988, com quatro instâncias judiciais. E, outra vez como nós, ao fim de sua existência eles têm lugar para ficar, o que, por vezes, causa problemas. Para os humanos, cemitérios que podem ser verticais (e têm um custo para a família) ou os tradicionais que, muitas vezes, contaminam as águas subterrâneas. Para os processos, há o custo com os arquivos criados para guardá-los, que seriam cemitérios processuais.

Para os humanos e para os processos criou-se uma solução pragmática: incinerar. O corpo humano, queimado por aparelhos de elevada precisão, transforma-se em cinzas. Parte delas é entregue à família em uma pequena caixa e lançada em um lugar que tivesse relação com o falecido. Já os processos teriam destino igual, apenas sem o componente afetivo simbolizado pela entrega da caixa ao autor da ação. Pois bem, o Projeto de Lei do Senado 166/2010, reeditando o antigo CPC de 1973, quer dar esta solução aos autos cuja existência chegou ao ponto final. Eis a redação do artigo 967 do projeto de lei do Senado:

Art. 967. Os autos poderão ser eliminados por incineração, destruição mecânica ou por outro meio adequado, findo o prazo de cinco anos, contado da data do arquivamento, publicando-se previamente no órgão oficial e em jornal local, onde houver, aviso aos interessados, com o prazo de um mês.

§ 1º As partes e os interessados podem requerer, às suas expensas, o desentranhamento dos documentos que juntaram aos autos ou cópia total ou parcial do feito.

§ 2º Se, a juízo da autoridade competente, houver nos autos documentos de valor histórico, serão estes recolhidos ao arquivo público.

Elio Gaspari, com a habilidade que lhe é peculiar, escreveu na Folha de São Paulo texto de oposição à iniciativa, sob o título “História não é maconha para ser queimada”. Com clareza mostrou o risco de adotar-se tal política, ou seja, a possibilidade de perder-se boa parte da história do Brasil retratada nos casos judiciais.

Tem razão o colunista. Só que o assunto deve ser examinado de um ponto de vista mais amplo, ou seja, sob todos os ângulos. E aí a conclusão a que se chegará é a de que o artigo 967 do PLS 166/2010 é totalmente inadequado, pois, de forma simplista, manda ao fogo milhares de processos. Nem se diga que o paragrafo 2º garante a preservação de documentos históricos, pois a autoridade competente, que no caso será o juiz da execução, nem é competente para avaliar valor histórico (por falta de formação científica na área) nem terá tempo para isto, envolvido nos seus milhares de processos.

Mas daí não se deve partir para o outro extremo, qual seja, nada pode ser inutilizado. Os que vivem a realidade forense sabem que a quantidade de processos findos é gigantesca. Isto gera um problema sério, ou seja, local para acomodar os milhões de processos findos.

A maior parte destes autos, quiçá 90%, não tem qualquer valor histórico. São ações repetitivas, folhas a retratar banalidades. Por exemplo, que valor terá uma execução fiscal proposta por um município litorâneo para cobrar o IPTU de um devedor não encontrado? Óbvio que guardar 10 exemplares deste tipo de execução fiscal frustrada é importante. Registrará como em 2010 se cobravam as dívidas fiscais. Agora, não faz sentido guardar 50 mil processos desta natureza, pagando caro por isso, para que as traças ou enchentes lhes dêem fim. O mesmo pode ser dito com relação a outras ações, como despejo por falta de pagamento, execuções de títulos de crédito ou restituição de empréstimos compulsórios pagos indevidamente.

Qual o preço que se paga por isso? Para que se tenha uma ideia, só no estado de São Paulo o Tribunal de Justiça contratou em 2003, pelo prazo de cinco anos, uma empresa para cuidar dos feitos arquivados, centralizando tudo na cidade de Jundiaí. Valor do contrato: R$ 26.981.145,24. Exatamente, quase R$ 27 milhões. E só vale para a primeira instância. Para o TJ há outro local. E não são poucas as ações de competência originária que lá devem ser armazenadas. Isto sem falar nos milhares de processos administrativos.

Não se argumente com guarda dos feitos em instituições universitárias. A estas só interessaria receber um número pequeno, porque, caso contrário, elas é que deveriam gastar milhões com a guarda. Microfilmar é solução teoricamente boa, mas até ultrapassada, pois digitalizar seria mais adequado. Mas, para isto, seriam necessários centenas de servidores, um longo tempo e muito dinheiro. Uma Vara da Fazenda Pública em Curitiba, uma só, pode significar mais de 100 mil processos. Imagine uma comarca, um estado, todo o Brasil.

Outro equívoco do PLS 166/2010 é falar em eliminar ou incinerar, quando papeis recicláveis podem ser triturados e aproveitados. Esta proposta não é apenas ambientalmente incorreta, mas é economicamente desastrosa.

E mais. O PLS não faz referência ao processo eletrônico. Fecha os olhos a uma nova realidade, presente em toda a Justiça Federal. Como preservar os casos de valor histórico? Tudo isto é deixado de lado, como se estivéssemos “nos tempos da brilhantina”.

Mas, então, que fazer com os autos findos?

Simples. Criar, nos Tribunais e Juízos de comarcas mais congestionadas, comissões para separar o que interessa ser preservado. Podem ser compostas por 1 juiz, 1 professor de história, 1 arquivista, 1 advogado e 1 servidor da Justiça (mais do que 5 não funciona). Algumas matérias, só por sua natureza, já seriam preservadas sem necessidade de exame (v.g., questões indígenas). Os processos escolhidos seriam guardados convenientemente.

A propósito, o CNJ já vem estudando o assunto. Através da Portaria 616/2009, constituiu o Comitê do Programa Nacional de Gestão Documental e Memória do Poder Judiciário (Proname). Esse grupo que é coordenado pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias, elaborou um minuta de resolução, a ser disponibilizada para consulta pública agora em agosto, que aprovará os princípios da gestão documental no Judiciário. Imprescindível, também, é a participação do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq), que, da mesma forma, vem estudando a matéria, inclusive tendo emitido Nota Técnica 1/2010, sobre a redação do PLS.

Como se vê, os problemas da administração da Justiça se tornam, a cada dia, mais complexos. Por isso mesmo devem ser enfrentados com bom senso (nem 8, nem 80) e eficiência. Caso contrário chegaremos ao colapso do sistema judicial.

Fonte: Conjur

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