por Marcos Antonio Duarte Silva*
O Pequeno Príncipe não é apenas um livro com teor filosófico ou ficcional, deve ser encarado com maior profundidade, assim como os tratados sobre o Estado, sobre as relações humanas, sobre a felicidade, sobre a amizade, sobre as palavras.
A perspectiva do livro são os anos de 1940 a 1944, quando foi escrito, daí ser importante não perder contato com a história do momento em que surge O Pequeno Príncipe, momento esse, de grandes transformações na Europa.
Nesse cenário de guerra é construído O Pequeno Príncipe, que beira a iniciativa crítica do livro O Príncipe, de Maquiavel. Ao expor a fronteira entre Maquiavel e Exupéry, não se busca similaridade do nome, ou circunstâncias que os aproximem, a comparação é entre o escrito de um e outro autor. Há encontros em lados opostos, de um e de outro texto, razão da relevância de um estudo mais apurado, crítico e analítico.
Tratando O Pequeno Príncipe, com denodado esforço para afirmar um Estado onde o cidadão seja tratado como ser humano e não apenas como uma máquina de guerra surge a emblemática frase “Quando o mistério é impressionante demais, a gente não ousa desobedecer”. Assim era e tem sido a postura de governar, “mistério”, não há uma forma consciente de governabilidade, e pior, quando se chega ao tão sonhado “poder”, se deslumbra e foge a régia regra, em que um poder deveria advir do povo. Ora, se o poder deveria evidenciar a vontade do povo, quem deveria ser consultado para as mais importantes decisões e mudanças provocadas na sociedade?
Utopia, a palavra a ser pensada agora não é de todo remota ao texto, mas há de se dizer que o povo sabe a hora de dizer não a muitas coisas, foi assim no passado, pode ser assim no futuro. A história universal confirma que os grandes movimentos de mudança aconteceram com a negativa do povo a uma forma não racional de governar.
No encontro do pequeno príncipe com o rei há um valioso diálogo entre o personagem central e o monarca apontando para esse raciocínio:
“- Ah! Eis meu súdito! – exclamou o rei ao ver o visitante.
E o principezinho perguntou a si mesmo:
Como pode ele reconhecer-me, se jamais me viu?
Ele não sabia que, para os reis, o mundo é muito mais simples. Todos os homens são súditos”.
Num diálogo simples, porém arguto, usando da fronteira mais curta possível, o encontro de ambos os personagens transmite uma vertente interessante: um súdito não questiona seu rei, apenas obedece. Neste exato momento, mesmo pueril, encontramos o pensamento do principezinho: “Como pode ele reconhecer-me, se jamais me viu?”. O término do pensamento é glorioso: “Todos os homens são súditos”. Isso no fim é o importante para o monarca: estar nas suas terras é imediatamente ser súdito dele.
Um simples mortal, ao pensar nesse conjunto de palavras expostas, há de se perguntar: basta ter nascido em determinado espaço de terra e já me torno súdito? A resposta só pode passar pela afirmação. O homem é nada mais num reino senão apenas um pagador de impostos, e, numa carência grande da palavra menos chocante para nossos tempos, é simplesmente um súdito.
E um súdito que deve ter como seu único dever ser correto, pagando todos os impostos e taxas advindas de sua existência no local onde vive. Aprendendo, sua vida se resume a isso.
No livro O Pequeno Príncipe, há uma viagem de descobertas, nas quais se vislumbram os ensinos traçados e enviesados pela mente desse personagem inquieto. Em conversa com o rei, o pequeno príncipe diz adorar ver o pôr do sol , e pede em forma de favor que lhe proporcione ver um ao seu comando.O soberano responde:
“- Se eu ordenasse a meu general voar de uma flor a outra como borboleta, ou escrever uma tragédia, ou transformar-se numa gaivota, e o general não executasse a ordem recebida, quem, ele ou eu, estaria errado?”.
A pergunta pertinente do rei mostra uma perspicácia interessante sobre dar ordem, e esperar ser ela obedecida sem que passe pelo possível, realizável, razoável, e carregue em si um inquestionável comando a ser cumprido. O príncipe, de pronto, diz ao monarca que ele está errado. Ao prosseguir o diálogo, o soberano afirma:
“Exato. É preciso exigir de cada um o que cada um pode dar - replicou o rei – A autoridade se baseia na razão. Se ordenares a teu povo que ele se lance no mar, todos se rebelarão. Eu tenho o direito de exigir obediência porque minhas ordens são razoáveis”.
É preciso analisar a que se refere o rei, “exigir de cada um o que pode dar”, por uma questão de fazer ver se em algum dia da história da humanidade os líderes tribais, reis, imperadores se firmaram apenas nesta questão: não ir além do que o súdito pode oferecer. Conferindo a história, não encontramos em qualquer período um bom-senso assim, mas, sim, exploração do mais alto grau a um limite sem precedente, a cada novo poder ao se levantar, surge então a pérola desse diálogo do rei com o príncipe, quando este oferece ao pequeno visitante o cargo de ministro da Justiça, e a pronta resposta é: “- Mas não há ninguém para julgar!”.
Surge então a pretensão mais astuta de um governante:
“- Tu julgarás a ti mesmo – respondeu-lhe o rei. – É o mais difícil. É bem mais difícil julgar a si mesmo que julgar os outros. Se consegues fazer um bom julgamento de ti, és um verdadeiro sábio”.
Julgar, uma das questões mais cruciais e de maior demanda de tempo num reino. Porque dela se espera a chamada justiça que, na cabeça dos súditos, assume multiplicidade de valores pessoais nem sempre contemplados pela norma vigente. O que de verdade as pessoas querem num julgamento? O que é a justiça para elas? Qual o elenco de normas que devem ser aplicadas? Justiça, julgar, julgamento requer muito tempo e qualquer rei não quer perder seu tempo com questões pequenas, soluções rápidas acalmam os súditos, isso no final é o importante: mantê-los calmos para as fundamentais tarefas num reino, trabalhar, produzir, pagar impostos, produzir mais e pagar mais.
Numa mudança brusca de tema, o pequeno príncipe conhece um empresário. Percebe ser ele muito ocupado em fazer contas e não perde tempo nem em acender o cigarro, demonstra não ser adepto de futilidades e se diz ser sério. Sua conta é tão alta, chamando a atenção do principal personagem: “- Quinhentos milhões de quê?”, e como seu costume era nunca desistir de uma pergunta já feita, o empresário não vê outra saída se- não responder:
“- Milhões dessas coisinhas que se vêem às vezes no céu.
- Moscas?
- Não, não. Essas coisinhas que brilham.
- Vagalumes?
- Também não. Essas coisinhas douradas que fazem sonhar os preguiçosos. Mas eu sou uma pessoa séria! Não tenho tempo para divagações”.
Surge então a discussão sobre o possuir as estrelas, em que não há uma compreensão do pequeno príncipe, uma vez ser sua mente voltada para coisas efêmeras. Um brilho sutil se reflete na mente daqueles que, a exemplo do pequeno príncipe, sonham com o efêmero das coisas. Mas surge desse encontro uma ideia daqueles sonhadores apenas de riquezas, não se importando com o quê, nem como, querem ser ricos custe o que custar. Vivem num mundo mais calcado na vantagem de um “poder” aparente para os efêmeros, mas muito real em sociedades que se baseiam no quanto, nos números de coisas angariadas e constroem sobre isso uma sociedade dos aceitos e dos rejeitados, onde há a materialização dos sonhos, cumpre lembrar, o mesmo empresário diz sobre esse tipo de sonhadores de estrelas: “fazem sonhar os preguiçosos”. Não há como negar que a frase do empresário possui em si mesma uma aparente ironia, as estrelas sabem muito bem de sua fala.
Segue em sua jornada e depara-se com um acendedor de lampiões, um trabalho de sentido, cumpria seus propósitos e tinha regulamento, acender e apagar o lampião. Segue-se um diálogo:
“ E tornou acender.
- Mas tornou de acendê-lo de novo?
- É o regulamento – respondeu o acendedor.
- Eu não compreendo – disse o príncipe.
- Não é para compreender – disse o acendedor – Regulamento é regulamento. Bom dia”.
No questionamento de não entender o porquê daquela forma de agir, sempre e sem parar, a explicação mais simples foi “regulamento é regulamento”, extrai-se daí, estranhamente, como deve funcionar o compromisso do funcionário com seu empregador, este é o regulamento, seguirei sem perguntar o porquê. Seria possível encontrar tal empregado que só para manter seu trabalho se permitisse regulamentos os mais difíceis possíveis? Uma discussão intermitente se daria se tal fato acontecesse, pois, evidente seria que o empregado, além de compreender o regulamento, teria que se adiantar a qualquer mudança e questionar se não há espaço para diálogo, assim sendo, poderia se chegar num bom senso comum de ajuste. Seria possível existir também tal reino?
Num reino assim, os dias durariam um minuto e em trinta minutos um mês já teria passado. Medida de tempo, respeitada como o acendedor respeitava, não lhe sobrava tempo a não ser para aquele único trabalho e mais nada. Viver essa medida de tempo, não ser inventivo para dentro do regulamento seguido nem arrumar um tempo, parece não envolver o acendedor e na conclusão do principezinho: “ser o único que se ocupa de outra coisa que não seja ele próprio”. Seria possível encontrar alguém preocupado com os outros e as outras coisas e não consigo próprio?
O próximo a ser visitado pelo príncipe é o geógrafo, que possuía livros enormes, e, ao ver o principezinho, exclama ser um explorador! Mas como os outros visitados, as perguntas vicejam e as respostas também, explicação de ser um geógrafo: um especialista em saber onde se encontram mares, montanhas, rios, cidades, desertos. Porém, com todo conhecimento do geógrafo, ele não podia dizer se existiam em seu planeta rios, mares, montanhas e muitas outras coisas. Explica também o tamanho do problema que poderia haver se os exploradores não fossem confiáveis, testados e inquiridos, imagine, uma montanha fora de seu lugar exato, um rio seguindo outra direção, o deserto ser o mar, grande confusão se formaria, a ponto de não serem precisas as explicações dadas. Como é próprio de os livros anotarem mapas, locais, e depois se perceber ser nada daquilo real, houve trocas gritantes. Conhecer o terreno, ou para onde se vai, é importante para quem deseja chegar, afinal, ainda que abstratamente a ideia de se chegar a algum lugar, em um momento da vida, num aspecto do tempo, tenha a sua importância.
O pequeno príncipe se ocupa em chegar a lugares e conhecer pessoas para confrontá-las, para aprender, ver, observar. Por isso, chegou ao planeta Terra. Viu em sua chegada um planeta enorme, comparado aos que já havia passado. Encontra-se com a serpente e pergunta onde exatamente está e se depara com o deserto, onde não há muitas pessoas. E fala:
“- A gente se sente um pouco só no deserto.
- Entre os homens a gente também se sente – disse a serpente”.
Solidão, tema absoluto do livro exposto, mexe em pontos soltos da vida solitária, de um reino habitado, mas apenas em sua superfície. Há um vazio mal resolvido, pouco mencionado, para quem sabe que o sentido de tudo que fazemos é um pouco mais real. O professor Márcio Pugliese afirma “o homem não é um ser para viver só”. Há um senso de procura, de refúgio, de desejo, que vai além do possível a ser compreendido em nossa mente. Obscura fica a vida num vazio constantemente preenchido apenas com a sensação incômoda da solidão. Não há necessidade de se estar sozinho para se estar só, pode-se estar numa multidão para se sentir em solidão. A companhia de alguém produz uma enorme dose de alegria para quem está sempre só. Se houver o ajuntamento de amigos, de uma porção de pessoas no desejo de se conhecerem, aí haverá uma explosão de alegria.
Próximo a essa constatação, chega-se ao ponto mais conhecido do livro, e com menor compreensão geral: o encontro com a raposa. Numa conversa aberta e franca se discute sobre cativar. O tema tratado como algo além do complemento do vazio merece a compreensão através do próprio texto:
“- Que quer dizer cativar?
- Eu procuro amigos. Que quer dizer cativar?
- É algo quase sempre esquecido – disse a raposa. – Significa criar laços “...
“Criar laços”, o poder desta pequena frase imputa à atmosfera algo maior, importante, um verdadeiro tratado nesse ponto sobre a amizade. Não há lojas de amigos, nem forma de comercializar a amizade, falta tempo para estar com amigos, sobra medo de criar laços para se cativar. “ Se tu queres um amigo, cativa-me.”
O que segue é a mais pura demonstração da arte de cativar amigos, cultivando-os por tempo indeterminado. Encontro, tempo para conversar, escolha do local certo, marcar locais especiais. Amizade sincera, sem interesse, busca do tempo “nós”. Inspirador e renovador.
Nesta viagem às páginas do livro O Pequeno Príncipe, ângulos diferentes poderiam ser descobertos, visitados. Entendemos ser um livro político em sua estrutura maior, mas não se dispensa a questão das descobertas de como é conviver com outras pessoas, o que não foge nem um pouco da política, uma vez ser ela em sua essência a prática de convivência com a sociedade.
Há uma frase que merece ser citada e se ter um pouco mais de atenção:
“Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos”.
Tratar do tema sobre o coração, algo próximo ao amor fraterno, físico, ou familiar é uma das tarefas difíceis em nossos dias, pois, falta-nos ver além do conhecido. E este ver bem com o coração, introduz um ver bem que só o coração pode enxergar. E fica mais curioso perceber que “o essencial é invisível aos olhos”. Essencial, essência é o que há de mais puro no que se procura. Se for num perfume, as essências são as que podem produzir muitos outros perfumes. Se for numa pessoa, é o mais profundo que se encontra no íntimo, o que não é revelado para ninguém, apenas “só se vê com o coração”. A invisibilidade é ver com quem se está verdadeiramente, ver não só a aparência, chegar à essência, não procurá-la. Esse é um verdadeiro segredo, enxergar bem com o coração, abstrair o desnecessário, para poder adentrar no essencial, invisível a qualquer tipo de olhar. Eis aí um grande desafio, chegar à essência.
Fim para um novo começo.
Notas:
SAINT- EXUPÉRY, Antoine. O Pequeno Príncipe. Agir Ed. 48ª Ed., p. 12.
O poder na visão dos políticos que se quer sabe o que é política. Esta deveria ser o condão entre o cidadão e os homens públicos.
Idem, p. 37.
* Marcos Antonio Duarte Silva é formado em Teologia em 1991 pelo Unasp, depois em Direito em 2005 pela Unip, adentrando no Lato Sensu, pelo Mackenzie titulado em 2008, em Direito Penal e Processo Penal, atualmente, estudante de Filosofia do Direito, Mestrando na PUC/SP.
Fonte: Jurisway
O Pequeno Príncipe não é apenas um livro com teor filosófico ou ficcional, deve ser encarado com maior profundidade, assim como os tratados sobre o Estado, sobre as relações humanas, sobre a felicidade, sobre a amizade, sobre as palavras.
A perspectiva do livro são os anos de 1940 a 1944, quando foi escrito, daí ser importante não perder contato com a história do momento em que surge O Pequeno Príncipe, momento esse, de grandes transformações na Europa.
Nesse cenário de guerra é construído O Pequeno Príncipe, que beira a iniciativa crítica do livro O Príncipe, de Maquiavel. Ao expor a fronteira entre Maquiavel e Exupéry, não se busca similaridade do nome, ou circunstâncias que os aproximem, a comparação é entre o escrito de um e outro autor. Há encontros em lados opostos, de um e de outro texto, razão da relevância de um estudo mais apurado, crítico e analítico.
Tratando O Pequeno Príncipe, com denodado esforço para afirmar um Estado onde o cidadão seja tratado como ser humano e não apenas como uma máquina de guerra surge a emblemática frase “Quando o mistério é impressionante demais, a gente não ousa desobedecer”. Assim era e tem sido a postura de governar, “mistério”, não há uma forma consciente de governabilidade, e pior, quando se chega ao tão sonhado “poder”, se deslumbra e foge a régia regra, em que um poder deveria advir do povo. Ora, se o poder deveria evidenciar a vontade do povo, quem deveria ser consultado para as mais importantes decisões e mudanças provocadas na sociedade?
Utopia, a palavra a ser pensada agora não é de todo remota ao texto, mas há de se dizer que o povo sabe a hora de dizer não a muitas coisas, foi assim no passado, pode ser assim no futuro. A história universal confirma que os grandes movimentos de mudança aconteceram com a negativa do povo a uma forma não racional de governar.
No encontro do pequeno príncipe com o rei há um valioso diálogo entre o personagem central e o monarca apontando para esse raciocínio:
“- Ah! Eis meu súdito! – exclamou o rei ao ver o visitante.
E o principezinho perguntou a si mesmo:
Como pode ele reconhecer-me, se jamais me viu?
Ele não sabia que, para os reis, o mundo é muito mais simples. Todos os homens são súditos”.
Num diálogo simples, porém arguto, usando da fronteira mais curta possível, o encontro de ambos os personagens transmite uma vertente interessante: um súdito não questiona seu rei, apenas obedece. Neste exato momento, mesmo pueril, encontramos o pensamento do principezinho: “Como pode ele reconhecer-me, se jamais me viu?”. O término do pensamento é glorioso: “Todos os homens são súditos”. Isso no fim é o importante para o monarca: estar nas suas terras é imediatamente ser súdito dele.
Um simples mortal, ao pensar nesse conjunto de palavras expostas, há de se perguntar: basta ter nascido em determinado espaço de terra e já me torno súdito? A resposta só pode passar pela afirmação. O homem é nada mais num reino senão apenas um pagador de impostos, e, numa carência grande da palavra menos chocante para nossos tempos, é simplesmente um súdito.
E um súdito que deve ter como seu único dever ser correto, pagando todos os impostos e taxas advindas de sua existência no local onde vive. Aprendendo, sua vida se resume a isso.
No livro O Pequeno Príncipe, há uma viagem de descobertas, nas quais se vislumbram os ensinos traçados e enviesados pela mente desse personagem inquieto. Em conversa com o rei, o pequeno príncipe diz adorar ver o pôr do sol , e pede em forma de favor que lhe proporcione ver um ao seu comando.O soberano responde:
“- Se eu ordenasse a meu general voar de uma flor a outra como borboleta, ou escrever uma tragédia, ou transformar-se numa gaivota, e o general não executasse a ordem recebida, quem, ele ou eu, estaria errado?”.
A pergunta pertinente do rei mostra uma perspicácia interessante sobre dar ordem, e esperar ser ela obedecida sem que passe pelo possível, realizável, razoável, e carregue em si um inquestionável comando a ser cumprido. O príncipe, de pronto, diz ao monarca que ele está errado. Ao prosseguir o diálogo, o soberano afirma:
“Exato. É preciso exigir de cada um o que cada um pode dar - replicou o rei – A autoridade se baseia na razão. Se ordenares a teu povo que ele se lance no mar, todos se rebelarão. Eu tenho o direito de exigir obediência porque minhas ordens são razoáveis”.
É preciso analisar a que se refere o rei, “exigir de cada um o que pode dar”, por uma questão de fazer ver se em algum dia da história da humanidade os líderes tribais, reis, imperadores se firmaram apenas nesta questão: não ir além do que o súdito pode oferecer. Conferindo a história, não encontramos em qualquer período um bom-senso assim, mas, sim, exploração do mais alto grau a um limite sem precedente, a cada novo poder ao se levantar, surge então a pérola desse diálogo do rei com o príncipe, quando este oferece ao pequeno visitante o cargo de ministro da Justiça, e a pronta resposta é: “- Mas não há ninguém para julgar!”.
Surge então a pretensão mais astuta de um governante:
“- Tu julgarás a ti mesmo – respondeu-lhe o rei. – É o mais difícil. É bem mais difícil julgar a si mesmo que julgar os outros. Se consegues fazer um bom julgamento de ti, és um verdadeiro sábio”.
Julgar, uma das questões mais cruciais e de maior demanda de tempo num reino. Porque dela se espera a chamada justiça que, na cabeça dos súditos, assume multiplicidade de valores pessoais nem sempre contemplados pela norma vigente. O que de verdade as pessoas querem num julgamento? O que é a justiça para elas? Qual o elenco de normas que devem ser aplicadas? Justiça, julgar, julgamento requer muito tempo e qualquer rei não quer perder seu tempo com questões pequenas, soluções rápidas acalmam os súditos, isso no final é o importante: mantê-los calmos para as fundamentais tarefas num reino, trabalhar, produzir, pagar impostos, produzir mais e pagar mais.
Numa mudança brusca de tema, o pequeno príncipe conhece um empresário. Percebe ser ele muito ocupado em fazer contas e não perde tempo nem em acender o cigarro, demonstra não ser adepto de futilidades e se diz ser sério. Sua conta é tão alta, chamando a atenção do principal personagem: “- Quinhentos milhões de quê?”, e como seu costume era nunca desistir de uma pergunta já feita, o empresário não vê outra saída se- não responder:
“- Milhões dessas coisinhas que se vêem às vezes no céu.
- Moscas?
- Não, não. Essas coisinhas que brilham.
- Vagalumes?
- Também não. Essas coisinhas douradas que fazem sonhar os preguiçosos. Mas eu sou uma pessoa séria! Não tenho tempo para divagações”.
Surge então a discussão sobre o possuir as estrelas, em que não há uma compreensão do pequeno príncipe, uma vez ser sua mente voltada para coisas efêmeras. Um brilho sutil se reflete na mente daqueles que, a exemplo do pequeno príncipe, sonham com o efêmero das coisas. Mas surge desse encontro uma ideia daqueles sonhadores apenas de riquezas, não se importando com o quê, nem como, querem ser ricos custe o que custar. Vivem num mundo mais calcado na vantagem de um “poder” aparente para os efêmeros, mas muito real em sociedades que se baseiam no quanto, nos números de coisas angariadas e constroem sobre isso uma sociedade dos aceitos e dos rejeitados, onde há a materialização dos sonhos, cumpre lembrar, o mesmo empresário diz sobre esse tipo de sonhadores de estrelas: “fazem sonhar os preguiçosos”. Não há como negar que a frase do empresário possui em si mesma uma aparente ironia, as estrelas sabem muito bem de sua fala.
Segue em sua jornada e depara-se com um acendedor de lampiões, um trabalho de sentido, cumpria seus propósitos e tinha regulamento, acender e apagar o lampião. Segue-se um diálogo:
“ E tornou acender.
- Mas tornou de acendê-lo de novo?
- É o regulamento – respondeu o acendedor.
- Eu não compreendo – disse o príncipe.
- Não é para compreender – disse o acendedor – Regulamento é regulamento. Bom dia”.
No questionamento de não entender o porquê daquela forma de agir, sempre e sem parar, a explicação mais simples foi “regulamento é regulamento”, extrai-se daí, estranhamente, como deve funcionar o compromisso do funcionário com seu empregador, este é o regulamento, seguirei sem perguntar o porquê. Seria possível encontrar tal empregado que só para manter seu trabalho se permitisse regulamentos os mais difíceis possíveis? Uma discussão intermitente se daria se tal fato acontecesse, pois, evidente seria que o empregado, além de compreender o regulamento, teria que se adiantar a qualquer mudança e questionar se não há espaço para diálogo, assim sendo, poderia se chegar num bom senso comum de ajuste. Seria possível existir também tal reino?
Num reino assim, os dias durariam um minuto e em trinta minutos um mês já teria passado. Medida de tempo, respeitada como o acendedor respeitava, não lhe sobrava tempo a não ser para aquele único trabalho e mais nada. Viver essa medida de tempo, não ser inventivo para dentro do regulamento seguido nem arrumar um tempo, parece não envolver o acendedor e na conclusão do principezinho: “ser o único que se ocupa de outra coisa que não seja ele próprio”. Seria possível encontrar alguém preocupado com os outros e as outras coisas e não consigo próprio?
O próximo a ser visitado pelo príncipe é o geógrafo, que possuía livros enormes, e, ao ver o principezinho, exclama ser um explorador! Mas como os outros visitados, as perguntas vicejam e as respostas também, explicação de ser um geógrafo: um especialista em saber onde se encontram mares, montanhas, rios, cidades, desertos. Porém, com todo conhecimento do geógrafo, ele não podia dizer se existiam em seu planeta rios, mares, montanhas e muitas outras coisas. Explica também o tamanho do problema que poderia haver se os exploradores não fossem confiáveis, testados e inquiridos, imagine, uma montanha fora de seu lugar exato, um rio seguindo outra direção, o deserto ser o mar, grande confusão se formaria, a ponto de não serem precisas as explicações dadas. Como é próprio de os livros anotarem mapas, locais, e depois se perceber ser nada daquilo real, houve trocas gritantes. Conhecer o terreno, ou para onde se vai, é importante para quem deseja chegar, afinal, ainda que abstratamente a ideia de se chegar a algum lugar, em um momento da vida, num aspecto do tempo, tenha a sua importância.
O pequeno príncipe se ocupa em chegar a lugares e conhecer pessoas para confrontá-las, para aprender, ver, observar. Por isso, chegou ao planeta Terra. Viu em sua chegada um planeta enorme, comparado aos que já havia passado. Encontra-se com a serpente e pergunta onde exatamente está e se depara com o deserto, onde não há muitas pessoas. E fala:
“- A gente se sente um pouco só no deserto.
- Entre os homens a gente também se sente – disse a serpente”.
Solidão, tema absoluto do livro exposto, mexe em pontos soltos da vida solitária, de um reino habitado, mas apenas em sua superfície. Há um vazio mal resolvido, pouco mencionado, para quem sabe que o sentido de tudo que fazemos é um pouco mais real. O professor Márcio Pugliese afirma “o homem não é um ser para viver só”. Há um senso de procura, de refúgio, de desejo, que vai além do possível a ser compreendido em nossa mente. Obscura fica a vida num vazio constantemente preenchido apenas com a sensação incômoda da solidão. Não há necessidade de se estar sozinho para se estar só, pode-se estar numa multidão para se sentir em solidão. A companhia de alguém produz uma enorme dose de alegria para quem está sempre só. Se houver o ajuntamento de amigos, de uma porção de pessoas no desejo de se conhecerem, aí haverá uma explosão de alegria.
Próximo a essa constatação, chega-se ao ponto mais conhecido do livro, e com menor compreensão geral: o encontro com a raposa. Numa conversa aberta e franca se discute sobre cativar. O tema tratado como algo além do complemento do vazio merece a compreensão através do próprio texto:
“- Que quer dizer cativar?
- Eu procuro amigos. Que quer dizer cativar?
- É algo quase sempre esquecido – disse a raposa. – Significa criar laços “...
“Criar laços”, o poder desta pequena frase imputa à atmosfera algo maior, importante, um verdadeiro tratado nesse ponto sobre a amizade. Não há lojas de amigos, nem forma de comercializar a amizade, falta tempo para estar com amigos, sobra medo de criar laços para se cativar. “ Se tu queres um amigo, cativa-me.”
O que segue é a mais pura demonstração da arte de cativar amigos, cultivando-os por tempo indeterminado. Encontro, tempo para conversar, escolha do local certo, marcar locais especiais. Amizade sincera, sem interesse, busca do tempo “nós”. Inspirador e renovador.
Nesta viagem às páginas do livro O Pequeno Príncipe, ângulos diferentes poderiam ser descobertos, visitados. Entendemos ser um livro político em sua estrutura maior, mas não se dispensa a questão das descobertas de como é conviver com outras pessoas, o que não foge nem um pouco da política, uma vez ser ela em sua essência a prática de convivência com a sociedade.
Há uma frase que merece ser citada e se ter um pouco mais de atenção:
“Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos”.
Tratar do tema sobre o coração, algo próximo ao amor fraterno, físico, ou familiar é uma das tarefas difíceis em nossos dias, pois, falta-nos ver além do conhecido. E este ver bem com o coração, introduz um ver bem que só o coração pode enxergar. E fica mais curioso perceber que “o essencial é invisível aos olhos”. Essencial, essência é o que há de mais puro no que se procura. Se for num perfume, as essências são as que podem produzir muitos outros perfumes. Se for numa pessoa, é o mais profundo que se encontra no íntimo, o que não é revelado para ninguém, apenas “só se vê com o coração”. A invisibilidade é ver com quem se está verdadeiramente, ver não só a aparência, chegar à essência, não procurá-la. Esse é um verdadeiro segredo, enxergar bem com o coração, abstrair o desnecessário, para poder adentrar no essencial, invisível a qualquer tipo de olhar. Eis aí um grande desafio, chegar à essência.
Fim para um novo começo.
Notas:
SAINT- EXUPÉRY, Antoine. O Pequeno Príncipe. Agir Ed. 48ª Ed., p. 12.
O poder na visão dos políticos que se quer sabe o que é política. Esta deveria ser o condão entre o cidadão e os homens públicos.
Idem, p. 37.
* Marcos Antonio Duarte Silva é formado em Teologia em 1991 pelo Unasp, depois em Direito em 2005 pela Unip, adentrando no Lato Sensu, pelo Mackenzie titulado em 2008, em Direito Penal e Processo Penal, atualmente, estudante de Filosofia do Direito, Mestrando na PUC/SP.
Fonte: Jurisway
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