sábado, 8 de maio de 2010

Júri Popular: posição contrária


"O golpe fatal no júri está na abso­lu­ta falta de moti­va­ção do ato deci­só­rio."

por Aury Lopes Jr.*

O Tribunal do Júri desem­pe­nhou um impor­tan­te papel na supe­ra­ção do sis­te­ma inqui­si­tó­rio, tendo o pen­sa­men­to libe­ral clás­si­co assu­mi­do a defe­sa do mode­lo de juiz cida­dão em con­tras­te com os hor­ro­res da inqui­si­ção. Mas o tempo passa e os refe­ren­ciais mudam. É ver­da­de que o Tribunal do Júri é cláu­su­la ­pétrea da Constituição, art. 5º, ­XXXVIII, mas isso não desau­to­ri­za a crí­ti­ca, até por­que pode­mos, sim, ques­tio­nar a legi­ti­mi­da­de de tal ins­ti­tui­ção para estar na Constituição. Ademais, recor­de­mos que o o júri é consagrado com a "orga­ni­za­ção que lhe der a lei", remetendo à lei ordi­ná­ria discipliná-lo, o que permite uma ampla e subs­tan­cial refor­ma (para além da rea­li­za­da em 2008, des­ta­que-se), desde que asse­gu­ra­dos o sigi­lo das vota­ções, a ple­ni­tu­de de defe­sa, a sobe­ra­nia dos vere­dic­tos e a com­pe­tên­cia para o jul­ga­men­to dos cri­mes dolo­sos con­tra a vida.

Um dos pri­mei­ros argu­men­tos invo­ca­dos pelos defen­so­res do júri é o de que se trata de uma ins­ti­tui­ção "demo­crá­ti­ca". Não se trata aqui de ini­ciar uma lon­guís­si­ma dis­cus­são do que seja "demo­cra­cia", mas com cer­te­za o fato de sete lei­gos, alea­to­ria­men­te esco­lhi­dos, par­ti­ci­pa­rem de um jul­ga­men­to é uma lei­tu­ra bas­tan­te redu­cio­nis­ta do que seja demo­cra­cia. A tal "par­ti­ci­pa­ção popu­lar" é ape­nas um ele­men­to den­tro da com­ple­xa con­cep­ção de demo­cra­cia, que, por si só, não funda abso­lu­ta­men­te nada em ter­mos de con­cei­to.

Noutra dimen­são, apon­ta-se para a legi­ti­mi­da­de dos jura­dos na medi­da em que são "elei­tos", como se isso fosse sufi­cien­te. Ora, o que legi­ti­ma a atua­ção dos juí­zes não é o fato de serem "elei­tos" entre seus pares (demo­cra­cia for­mal), mas sim a posi­ção de garan­ti­do­res da efi­cá­cia do sis­te­ma de garan­tias da Constituição (demo­cra­cia subs­tan­cial).

Ademais, de nada serve um juiz elei­to, se não lhe damos as garan­tias orgâ­ni­cas da magis­tra­tu­ra e exi­gi­mos que assu­ma sua fun­ção de garan­ti­dor.

Os jura­dos tam­pou­co pos­suem a "repre­sen­ta­ti­vi­da­de demo­crá­ti­ca" neces­sá­ria (ainda que se ana­li­sas­se numa dimen­são for­mal de demo­cra­cia), na medi­da em que são mem­bros de seg­men­tos bem defi­ni­dos: fun­cio­ná­rios públi­cos, apo­sen­ta­dos, donas-de-casa, estu­dan­tes, enfim, aque­les que não têm nada ­melhor para fazer e cuja ocu­pa­ção lhes per­mi­te per­der um dia intei­ro (ou mais) em um jul­ga­men­to.

Argumenta-se, ainda, em torno da inde­pen­dên­cia dos jura­dos. Grave equí­vo­co. Os lei­gos estão muito mais sus­ce­tí­veis a pres­sões e influên­cias polí­ti­cas, eco­nô­mi­cas e, prin­ci­pal­men­te, midiá­ti­ca, na medi­da em que care­cem das garan­tias orgâ­ni­cas da magis­tra­tu­ra.

A falta de pro­fis­sio­na­lis­mo, de estru­tu­ra psi­co­ló­gi­ca, alia­dos ao mais com­ple­to des­co­nhe­ci­men­to do pro­ces­so e de pro­ces­so, são gra­ves incon­ve­nien­tes do Tribunal do Júri. Não se trata de ido­la­trar o juiz toga­do, muito longe disso, senão de com­preen­der a ques­tão a par­tir de um míni­mo de serie­da­de cien­tí­fi­ca, impres­cin­dí­vel para o desem­pe­nho do ato de jul­gar.

Os jura­dos care­cem de conhe­ci­men­to legal e dog­má­ti­co míni­mo para a rea­li­za­ção dos diver­sos juí­zos axio­ló­gi­cos que envol­vem a aná­li­se da norma penal e pro­ces­sual apli­cá­vel ao caso, bem como uma razoá­vel valo­ra­ção da prova, conduzindo ao empi­ris­mo ras­tei­ro na decisão.

Outro grave pro­ble­ma refe­re-se ao aspec­to pro­ba­tó­rio, espi­nha dor­sal do pro­ces­so penal, pois a prova é colhi­da na pri­mei­ra fase, dian­te do juiz pre­si­den­te, mas na ausên­cia dos jura­dos. Em ple­ná­rio, até pode ser pro­du­zi­da algu­ma prova, mas a prá­ti­ca demons­tra que essa é uma rarís­si­ma exce­ção.

A regra geral é a rea­li­za­ção de mera lei­tu­ra de peças, com acu­sa­ção e defe­sa explo­ran­do a prova já pro­du­zi­da e sub­train­do dos jura­dos a pos­si­bi­li­da­de do con­ta­to dire­to com tes­te­mu­nhas e ­outros meios de pro­vas, e, como muito, have­rá inter­ro­ga­tó­rio no final. O jul­ga­men­to resu­me-se a ­folhas mor­tas.

Outra garan­tia fun­da­men­tal, que cai por terra no Tribunal do Júri, é o direi­to de ser jul­ga­do a par­tir da prova judi­cia­li­za­da, que cai por terra, na medi­da em que não exis­te a exclu­são físi­ca dos autos do inqué­ri­to e tam­pou­co há veda­ção de que se uti­li­ze em ple­ná­rio os ele­men­tos da fase inqui­si­to­rial (inclu­si­ve o jul­ga­men­to pode tra­var-se exclu­si­va­men­te em torno dos atos do inqué­ri­to poli­cial).

O golpe fatal no júri está na abso­lu­ta falta de moti­va­ção do ato deci­só­rio. A moti­va­ção serve para o con­tro­le da racio­na­li­da­de da deci­são judi­cial. Não se trata de gas­tar ­folhas e ­folhas para demons­trar eru­di­ção jurí­di­ca (e juris­pru­den­cial) ou dis­cu­tir obvie­da­des. O mais impor­tan­te é expli­car o por­quê da deci­são, o que o levou a tal con­clu­são sobre a auto­ria e mate­ria­li­da­de.

A situa­ção é ainda mais grave se con­si­de­rar­mos que a liber­da­de de con­ven­ci­men­to (imo­ti­va­do) é tão ampla que per­mi­te o jul­ga­men­to a par­tir de ele­men­tos que não estão no pro­ces­so. A "ínti­ma con­vic­ção", des­pi­da de qual­quer fun­da­men­ta­ção, per­mi­te a imen­sa mons­truo­si­da­de jurí­di­ca de ser jul­ga­do a par­tir de qual­quer ele­men­to, num retro­ces­so ao Direito Penal do autor, ao jul­ga­men­to pela "cara", cor, opção ­sexual, reli­gião, posi­ção socioe­co­nô­mi­ca, apa­rên­cia físi­ca, pos­tu­ra do réu duran­te o jul­ga­men­to ou mesmo antes do jul­ga­men­to, enfim, é imen­su­rá­vel o campo sobre o qual pode ­recair o juízo de (des)valor que o jura­do faz em rela­ção ao réu. E, tudo isso, sem qual­quer fun­da­men­ta­ção.

A supre­ma­cia do poder dos jura­dos chega ao extre­mo de per­mi­tir que eles deci­dam com­ple­ta­men­te fora da prova dos autos, desde que o façam duas vezes (art. 593, § 3º).

Outra conquista civilizatória que cai por terra é o in dubio pro reo . Quando os jura­dos deci­dem pela con­de­na­ção do réu por 4x3, está evi­den­cia­da a dúvi­da, em sen­ti­do pro­ces­sual. Significa dizer que exis­te ape­nas 57,14% de con­sen­so, de con­ven­ci­men­to...e isso não é o nível de convencimento necessário para uma condenação, eis que se exige uma certeza jurídica, um alto nível de convicção no decreto condenatório.

Uma alternativa seria aumentar o núme­ro de jura­dos para 8, de modo que alguém somen­te seria con­de­na­do se hou­ves­se no míni­mo dois votos de dife­ren­ça, isto é, cinco con­tra três (sugestão de Marco Aurélio Moreira de Oliveira).

Também é absurda a aplicação do in dubio pro societate e a manutenção da decisão de impronúncia, mas isso é muito complexo para tratar neste diminuto espaço, sendo necessário remeter o leitor para minha obra 'Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional', volumes 1 e 2, onde trato com mais profundidade destes temas.

Por fim, salta aos olhos que a admi­nis­tra­ção de jus­ti­ça pode per­fei­ta­men­te pres­cin­dir de uma ins­ti­tui­ção tão arcai­ca e pro­ble­má­ti­ca como é o Tribunal do Júri. Ou, no mínimo, há muito que se melhorar.

* Aury lopes Jr. é Advogado Criminalista. Doutor em Direito Processual Penal - Universidad Complutense de Madrid. Professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais - Mestrado e Doutorado - da PUC/RS. Coordenador do Curso de Especialização em Ciências Penais da PUC/RS. Autor de diversas obras.

Fonte: Jornal Carta Forense, terça-feira, 4 de maio de 2010

Um comentário:

Anônimo disse...

Mais um pobre colega jurista que não consegue sair da bolha virtual do mundo jurídico e relacioná-la ao mundo real vislumbrando as pessoas de bem.